“O Ginásio do Ibirapuera é um marco do contexto das políticas públicas voltadas ao esporte no país e é também um marco histórico e arquitetônico não só da cidade de São Paulo e do Estado, mas do Brasil como um todo. Ele faz parte do projeto do parque Ibirapuera. Quando se vê uma imagem aérea, se percebe que é um desenho só. Ele é o marco de uma memória da história das políticas públicas. Isso é muito importante.”

Assim fala Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em entrevista ao TUTAMÉIA. Artista digital reconhecida internacionalmente, ela é uma das envolvidas na articulação de protesto contra o anunciado projeto do governador João Dória Jr. de entregar o complexo esportivo do Ibirapuera à exploração da iniciativa privada –o que envolve a demolição de todo o conjunto.

Já conhecido há mais tempo, o projeto voltou à nota porque na última segunda-feira (30.11), dia seguinte ao do segundo turno da eleição para prefeito, aconteceu o primeiro passo para abrir caminho para o projeto de destruição/privatização do Ginásio do Ibirapuera. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) decidiu não iniciar processo de análise para o tombamento do complexo desportivo.

Beiguelman lembra que, no ano passado, Dória Jr. mudou por decreto a composição do conselho, que tinha representantes das universidades públicas e da sociedade civil como um todo: “A partir desse decreto, essa participação foi substancialmente reduzida e, no seu lugar, entraram representantes do governo, representantes designados pelo governador pelo seu notório saber –de acordo com o governo–. O resultado nós podemos auferir pela votação: foram 16 fotos contrários ao processo de tombamento. Doze desses votos vieram de representantes do governo. É muito significativo.”  (Clique no vídeo do alto da página para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV)

A artista e professora da USP afirma que o projeto de privatização e destruição do conjunto “é um massacre da história arquitetônica”. E segue: “Não podemos esquecer que o ginásio do Ibirapuera, que é a parte que está destinada provavelmente a se tornar um centro comercial, portanto um shopping, o ginásio é projeto do arquiteto Ícaro de Mello, que foi também atleta  –campeão brasileiro e sul-americano de salto em altura e salto com vara, integrou a equipe brasileira de atletismo na Olimpíada de Berlim, em 1936. É um caso raríssimo, um caso único”.

“Temos aí uma história da paisagem urbana, uma história das políticas públicas, do lazer e do esporte, algo que foi sendo massacrado pelas políticas neoliberais, como se isso não fosse uma prerrogativa também do Estado: garantir lugares de lazer, de ócio e de saúde, que é o esporte, para a população em geral.”

Chama a atenção para o fato de “a discussão sobre o patrimônio público diz respeito a nós e, no contexto em que nós vivemos, as formas pelas quais o mercado imobiliário vem tomando o lugar da discussão do bem público, do bem comum”.

Exatamente isso, por sinal, ocorre uma grande mobilização dos mais diversos setores da sociedade –de historiadores e arquitetos a atletas de várias modalidades, movimentos populares e entidades sindicais—contra o movimento privatista. Quando fizemos a entrevista, nesta quinta-feira (3.12), mais de cinquenta mil pessoas já tinham aderido ao abaixo-assinado em defesa do Ginásio do Ibirapuera, cujo texto reproduzimos a seguir.

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PELA PRESERVAÇÃO DO GINÁSIO DO IBIRAPUERA
E DO CONJUNTO CONSTÂNCIO VAZ GUIMARÃES

Arquitetos, historiadores, esportistas e membros da sociedade civil vêm a público manifestar sua extrema preocupação com os destinos do Ginásio do Ibirapuera e do Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” diante do Projeto de Concessão do Governo do Estado para a área e seu apoio à carta produzida por docentes e pesquisadores da FAUUSP.
O projeto, tal como estruturado, representa séria ameaça à integridade física e ao funcionamento de um equipamento esportivo que, além de ser muito utilizado na formação de atletas no Brasil, é constitutivo da história da cidade de São Paulo e realização fundamental da história da arquitetura brasileira. Além disso, tem um grande valor de uso e afetivo pela comunidade esportiva que dele faz intenso uso desde os anos 1950.
São diferentes os motivos que justificam a preservação do Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães”, onde se localiza o Ginásio de Ibirapuera. Esse último edifício deve ser protegido por questões estilísticas e construtivas, mas também pela sua importância dentro da arquitetura moderna brasileira e da modernização do esporte e da cultura da cidade de São Paulo em meados do século XX. Quer dizer, o Ginásio é fundamental para compreender as arquiteturas brasileiras para o tempo livre e o lazer, assim como para entender as transformações do espetáculo e da prática esportiva nesta metrópole em permanente expansão. Aliás, o Ginásio representa os esforços do poder público para criar espaços públicos de alta qualidade disponíveis à população.
O seu arquiteto, Ícaro de Castro Mello – atleta recordista sul-americano de salto em altura e salto com vara, membro da equipe brasileira de atletismo nas Olimpíadas de Berlim, em 1936 –, é consagrado autor de diversas obras relevantes para a história da arquitetura brasileira, realizadas no Departamento de Educação Física e Esportes (D.E.F.E.) do Governo do Estado e em seu escritório particular, como a Piscina Coberta do Conjunto Desportivo Baby Barioni, em São Paulo; o Ginásio Paulo Sarasate, em Fortaleza; o Ginásio Geraldo Magalhães, em Recife; os edifícios esportivos do Sesc Itaquera e Bertioga, entre outra centenas de edificações . A sua atividade, além de indicar a relação entre as carreiras de atleta e arquiteto, garantia da expertise e da qualidade de seus projetos, fala da valorização social das atividades esportivas e de lazer e, a partir daí, da ação qualificada do Estado para o bem comum. Tal atuação foi reconhecida não só entre os especialistas, mas pela cidade que deu à praça à frente do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães o seu nome próprio.

A construção do Ginásio tem que ser entendida, portanto, como parte de um processo maior de construção de equipamentos esportivos e de lazer na cidade e no Estado de São Paulo, iniciado pelo menos em meados da década de 1930, quando começou edificação do Estádio do Pacaembu, foi estruturada a Escola de Educação Física de São Paulo e o Departamento de Educação Física e Esportes do Estado (DEESP), e foram estabelecidos nos Jogos Abertos do Interior. O Ginásio é parte de um esforço público do governo estadual para impulsionar a prática esportiva em diversas cidades. Exemplo disso são os Ginásios de Sorocaba (1950) e Ribeirão Preto (1951), ambos projetos do Ícaro e desenvolvidos no interior do (DEESP).
No início da década de 1950, São Paulo era um lugar importante dentro do circuito esportivo internacional. O tamanho de sua indústria esportiva, a densidade de sua rede de clubes e federações, o desenvolvimento da arquitetura esportiva na cidade e sua posição privilegiada dentro do mapa esportivo brasileiro, faziam da capital paulista um ponto atrativo para sediar eventos esportivos de grande escala. Ademais, o esporte chamava a atenção de milhares de pessoas todos os finais de semanas, que participavam tanto como praticantes amadores quanto como espectadores de jogos do campeonato profissional de futebol, mas que também participavam e assistiam competições atléticas, combates e lutas de artes marciais, exibições de esportes aquáticos e corridas de ciclismo pela cidade. Esse contexto favorável fez que o esporte fosse considerado como parte das comemorações do IV Centenário. Popular, fortemente organizado, e de interesse público e privado, o esporte era um campo social em que a cidade de São Paulo também poderia projetar sua excepcionalidade.

O impulso também esteve influenciado pelo efeito do pan-americanismo esportivo —os primeiros jogos Pan-Americanos foram organizados em Buenos Aires, em 1951— e outras competições internacionais no continente, mas também pelo próprio diagnóstico feito no interior do campo esportivo paulista em relação à necessidade de edificar equipamentos esportivos complementares os já existentes: enquanto o Pacaembu já era visto como ultrapassado, a cidade também precisava de uma piscina olímpica aquecida —a Piscina de Água Branca, pertencente ao Conjunto Desportivo Baby Barioni, foi inaugurada em paralelo à construção do Ginásio do Ibirapuera— e de um estádio coberto, que seja sede de eventos esportivos, shows musicais, atividades culturais e comícios políticos, tal como já acontecia nos casos do Luna Park em Buenos Aires ou do Madison Square Garden em Nova York. Nesse sentido, a construção do Ginásio do Ibirapuera procurava cumprir uma função social dentro da trama social e cultural da cidade.

Por diversos motivos financeiros e do desenvolvimento da Comissão do IV Centenário, o Ginásio não conseguiu ser inaugurado para a Copa do Mundo de Basquete, evento que formaria parte das comemorações de 1954 em São Paulo. O edifício esportivo começou a funcionar em 1957, constituindo-se rapidamente num dos principais cenários do esporte e da cultura paulista e brasileira. O velódromo ficou prontamente desatualizado em relação às normas da União Ciclista Internacional e foi reformado pelo arquiteto Ícaro de Castro Mello, transformando-o num Estádio Atlético inaugurado em 1965. Três anos mais tarde, o complexo esportivo foi complementado com a inauguração do Conjunto Aquático, de autoria do arquiteto Nestor Lindenberg,  palco da expansão da natação paulista e da prática amadora de milhares de pessoas ao longo das suas décadas de uso público, como também pelo Ginásio Poliesportivo de Roberto Simões.

É importante também entender o Ginásio como parte das tensões, rupturas e permanências do longo percurso da constituição do Parque do Ibirapuera: desde meados da década de 1920 foi defendida a ideia de um parque metropolitano onde fosse possível o acesso ao lazer por parte de diferentes classes sociais, um local onde fosse possível o contato com a natureza, em contraponto ao crescimento e ao aumento da densidade urbana paulistana. O Ginásio e o Velódromo primeiro, e logo depois o Parque Aquático, faziam parte desse espírito. Uma defesa do Ginásio do Ibirapuera e do Complexo Esportivo é também uma defesa do direito ao lazer, uma ideia que esteve no interior das discussões sobre o que deviam ser as comemorações do IV Centenário. O Ibirapuera não era arte e indústria só, também era local para a prática do esporte, o lazer e o espetáculo. O Ibirapuera é a marquise e os pavilhões, assim como também o Ginásio e o Velódromo. Desancorar o complexo esportivo da história do parque é apagar uma das principais narrativas que justificaram a construção de um dos principais espaços públicos da cidade.

A vitalidade contemporânea do conjunto esportivo pode ser comprovada nas transformações e adequações que foram sendo progressivamente realizadas de modo a adequá-lo às mudanças nas práticas esportivas, nos seus equipamentos e modalidades. As mudanças são prova da resiliência do Conjunto Esportivo na cidade. O intenso uso que dos espaços, que formou inúmeros vitoriosos atletas brasileiros como Maurren Maggi, Tiago Camilo, Felipe Kitadai, Rafael Silva e tantos outros, mostra a importância do conjunto para o esporte brasileiro.
Estando em com o Parecer Técnico da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico – UPPH da Secretaria de Estado da Cultura que afirma que o conjunto constitui importante referência à memória, à ação e à identidade de São Paulo, conforme as indicações da Constituição Brasileira no seu artigo 216 do que se determina como patrimônio cultural no Brasil. É também marco histórico fundamental da arquitetura moderna brasileira/ paulista no campo dos equipamentos esportivos no seu todo, mas também em relação às partes que o compõem. Individualmente, os edifícios do Conjunto Desportivo, do Ginásio, do Estádio de Atletismo e do Conjunto Aquático são exemplares incontornáveis da produção paulista de arquitetura moderna que devem ser preservados às gerações futuras.

A proposta em curso de transformação do Complexo em equipamento privado alterará de maneira grave e irreversível a sua materialidade. Ela desconsidera a organização dos espaços livres, a excelência e a qualidade de sua arquitetura, o seu papel na memória e na paisagem urbana de São Paulo. A execução de um projeto com tal caráter destruirá parte da história e da memória da cidade, comprometendo também o seu desenvolvimento futuro. Por fim, a preservação deste patrimônio paulistano e nacional iria também ao encontro com as preocupações recentes com preservação ambiental e a sustentabilidade.