Massacre em Gaza, efeitos da guerra na Ucrânia e ampliação do Brics expõem  isolamento dos Estados Unidos. Com a emergência da China, a disputa pela hegemonia mundial faz acirrar os conflitos pelo mundo.

Nesse cenário, a volta de Lula dá força para os defensores da multipolaridade. Seu discurso de contestação do poderio das antigas potências, se colocando contra a hipocrisia generalizada, repercute especialmente no Sul do planeta. A defesa da paz, a condenação ao genocídio, a batalha pela extinção da fome e da desigualdade e o combate à crise ambiental ecoam em diferentes fóruns.

No plano interno, o governo desenvolve políticas setoriais importantes para a melhoria da qualidade de vida da população, mas não consegue ainda superar as balizas impostas pelo mercado financeiro e pelo capital internacional.

A ameaça fascista segue presente no Brasil e no mundo. Basta olhar para o violento conjunto de medidas contra a população, a democracia e a soberania anunciado na Argentina nos últimos dias. São ideias de destruição e selvageria que promovem o saque pelos mais ricos das riquezas do país e das famílias.

É contra esse pensamento, já presente no Brasil, que será preciso organizar os brasileiros para os próximos enfrentamentos, buscando avançar nas conquistas por uma sociedade menos desigual.

Esses são os principais pontos da retrospectiva de 2023 elaborada pela equipe TUTAMÉIA (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

GAZA, UCRÂNIA, BRICS, DÓLAR, ÁFRICA, LULA E MILEI

Mais de 21 mil palestinos foram assassinados por Israel em Gaza. São 8.500 crianças e 6.200 mulheres. Há 7.800 desaparecidos. 103 jornalistas foram alvo das bombas e dos fuzis israelenses. Hospitais foram deliberadamente aniquilados. 60% das casas foram destruídas.

Essa mortandade sem paralelo choca o mundo e cada vez mais isola os Estados Unidos e Israel. As manifestações em defesa dos palestinos e do cessar fogo imediato ganham as praças dos países ricos. Ações de bloqueio e boicote contra Israel crescem.

Nos EUA, as mobilizações lembram os protestos contra da Guerra do Vietnã. Em Londres, centenas de milhares de pessoas marcham contra o genocídio; manifestações ocorrem nas principais capitais europeias, apesar da tentativa contenção ou de repressão feita por alguns governos. A causa palestina ganha corações e mentes e impõe uma derrota histórica ao imperialismo.

Na Europa, a guerra na Ucrânia mostra outro fracasso da estratégia imperial. Perto de completar dois anos, a Rússia parece estar cada vez mais próxima de uma vitória militar. A contraofensiva das forças orientadas e financiadas pelos Estados Unidos não deu resultado e há um esgotamento dos apoiadores de Zelensky.

As sanções impostas à Rússia também não surtiram o efeito desejado pelos EUA. O país governado por Putin deve crescer mais do que a Alemanha, que amarga as consequências de uma posição subalterna aos estadunidenses. Os alemães enfrentam alta nos preços da energia e encaram uma recessão, ao mesmo tempo em que crescem  no país forças de extrema direita.

O conflito acabou aproximando a Rússia da China. O comércio entre os dois países atingiu um recorde em 2023, com um crescimento de 26,7% neste ano. Cerca de 95% dos negócios bilaterais são feitos em yuans e rublos. Pela primeira vez na história, 49% das transações feitas pela China foram em sua própria moeda. Evidência de um movimento que ganhou ímpeto: as transações que escapam do dólar. Mais um sinal de enfraquecimento na liderança norte-americana pelo mundo.

Também a ampliação do Brics, anunciada em meados do ano e que será posta em prática em 2024, demonstra que o eixo da terra está se movendo, como definiu o embaixador Celso Amorim ao TUTAMÉIA.

“A ampliação do Brics certamente explode a ordem mundial dos últimos 80 anos, depois do pós-guerra. Fazendo um pouco de uma hipérbole, ela muda um pouco o eixo da terra. O eixo geopolítico era centrado no chamado Ocidente, que inclui também o Japão, a Austrália, não estritamente o Ocidente do ponto de vista geográfico. Isso agora, já em decorrência de várias mudanças que vinham já acontecendo, faz com que o eixo se desloque. Não é que substituiu totalmente, não é que acabou com o eixo do G7. Mas ele não é mais o eixo dominante”, declarou.

Juntos, os 11 países do novo Brics envolvem 46% da população mundial, 36% do PIB global e a maior parte das reservas de petróleo, gás e alimentos.

Igualmente na África, as forças imperialistas enfrentaram revezes em 2023. Em 26 de julho, um golpe militar derrubou o presidente alinhado com a França, que explora os recursos minerais do país, especialmente o urânio. O novo poder expulsou os franceses.

A revolta no Níger vem na esteira de movimentos anticolonialistas que eclodiram nos últimos anos no Mali, em Burkina Faso e na Guiné. Em todos esses países, militares se revoltaram contra a presença de tropas francesas e norte-americanas em seus territórios, que impõem regimes de exploração que geram crises econômicas e sociais intermináveis.

Na América do Sul, a posse de Lula mudou o jogo político na região, fortalecendo a união regional –em tendência que sempre desperta desagrado em Washington.

A contraofensiva imperial veio na figura de Milei na Argentina, que promete implodir laços de ações conjuntas no continente. Implantando a selvageria em limites, planeja um retrocesso sem precedentes no país vizinho, o que trará consequências para toda a região. Mais do que as “relações carnais”, alardeadas por Menen, Milei quer uma submissão irrestrita ao império. A ver a reação popular, que já está nas ruas nesse momento.

Como na África, a América do Sul é palco da disputa global por hegemonia. A China passou a ser o principal parceiro comercial na ampla maioria dos casos. Já superou o Brasil nos negócios com a Argentina, por exemplo. E constrói um megaporto no Peru, capaz de servir como corredor para as exportações da região. É claro que os norte-americanos estão irritados com essa presença forte do que já foi definido como o seu quintal.

Nesse contexto, o ano também foi marcado por revoltas no Peru (que deixaram 70 mortos), pelas posições audaciosas do presidente colombiano Gustavo Petro (em relação ao ambiente, ao genocídio em Gaza), pelos impasses no Chile em razão de seu governo titubeante e pela disputa por Essequibo. Agora em banho-maria, graças à intervenção brasileira, o embate expõe uma nova fronteira imperial em busca de petróleo.

LULA 3, ANO 1

Lula subiu a rampa em primeiro de janeiro numa festa histórica para o país. Recuperado do golpe norte-americano que derrubara a soberania com a queda de Dilma, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro, o país virava a página.

O 8 de janeiro mostrou os limites dessa avaliação. A tentativa de golpe expôs a contaminação das Forças Armadas pela extrema direita entreguista e a fúria fascista enraizada nos setores mais retrógrados: a parcela ressentida da classe média, os fanáticos religiosos, os policiais militares, os delinquentes do agronegócio, da mineração, do desmatamento, do crime.

A reação conjunta dos poderes, coordenada por Lula, brecou a intentona. A democracia foi garantida, mas o combate às ameaças fascistas não avançou de forma contundente.

Até agora, o STF condenou 25 pessoas entre os mais de 1.400 denunciados pelos atos do 8 de janeiro. Falta apontar os responsáveis de fato pelo movimento, os grandes financiadores, os militares e políticos que planejaram o golpe, Bolsonaro. Ele está inelegível.  É muito pouco para os crimes que cometeu nos seus quatro anos.

Resistindo ao golpismo, Lula recuperou indicadores econômicos, reimplantou programas sociais, criou novas iniciativas, implantou um discurso baseado na pacificação, na reconstrução, na negociação.

Foi bem-sucedido.

Bolsa-família, Mais médicos, Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular, Desenrola, Financiamento Estudantil, programas de inclusão, financiamento à cultura, à ciência e tecnologia. A vacinação voltou.

O salário mínimo teve aumento real, trazendo expectativa de impactos positivos na economia, como ocorreu nos primeiros governos Lula.

Logo nos primeiros dias de governo, a visita ao território Yanomami foi um sinal de que tudo estava diferente no governo. Houve repressão ao crime na Amazônia, ao desmatamento.

A mobilização da extrema direita, o braço ideológico do grande capital internacional, não parou. Nas redes sociais, a enxurrada de falsidades continuou. O desmatamento aumentou no Cerrado e no Pantanal, a seca na Amazônia foi histórica, os yanomamis seguem sendo atacados. O marco temporal ganhou no Congresso. A reforma agrária ficou estagnada.

Pressionado pelo mercado financeiro, encastelado num Banco Central que mantém as taxas de juros nas alturas (apesar das reduções a conta-gotas), o governo se autoinfligiu as amarras do arcabouço fiscal.

Festejando uma reforma tributária que ainda precisa ser regulamentada, o governo termina o ano apresentando queda no desemprego, inflação abaixo do teto da meta e crescimento do PIB três vezes maior do que o previsto pelo mercado no início do ano. A bolsa se valorizou quase 30% em dólar e as agências de risco promoveram o país em suas classificações.

Se o mercado está feliz, embora mantendo sempre sua pressão sobre a “gastança”, o governo continua enredado nos entraves que o congresso impõe aos gastos governamentais.

Os interesses dos grandes capitais seguem intocados, assim como os interesses dos militares, sempre subordinados aos EUA.

A Comissão de Mortos e Desaparecidos não voltou.

Um projeto de desenvolvimento ainda está sendo desenhado. É o que diz o governo. Nada aconteceu que mudasse o quadro da privatização “quase bandida” da Eletrobrás. Na Petrobrás, poucas mudanças de fundo.

A comunicação governamental reflete essa falta de projeto; é difusa, reativa, inerte.

Ela precisa mudar para enfrentar os embates que virão. As pesquisas, indicando uma calcificação na opinião pública, são sinal amarelo para o governo.