“A produção de Sérgio Ricardo sempre foi muito autoral e engajada politicamente, pegando a arte como uma ação no mundo. O Sérgio era uma pessoa que via sua própria existência como uma possibilidade de encontros, de criatividade, de pensamento. O apartamento dele, no Vidigal, era um ponto de encontro para jovens artistas, para velhos artistas, para que velhos artistas encontrassem novos artistas.”

É o que lembra o jovem cineasta Daniel Paes, colaborador de Sérgio Ricardo nos últimos filmes realizados pelo multiartista, que morreu em julho último, aos 88 anos. Diretor da produtora Iracema Filmes e professor de jornalismo, ele é um dos envolvidos na construção do projeto Sérgio Ricardo Memória Viva, que acaba de estrear no mundo digital.

A fala de Paes de certa forma “conversa” com a convocação feita por Sérgio Ricardo, exposta logo na abertura do site dedicado à sua obra: “Debata! Reivindique! Ensine! Aprenda! Organize! Escreva! Cante! Cinematografe! Teatralize! Grite! Pinte! Convoque! Reúna! Cobre! Discuta! Informe! Publique! Exponha! Descubra! Pesquise! O grande sonho brasileiro.”

A trajetória de Sérgio Ricardo e sua contribuição à cultura brasileira foram os temas da multientrevista realizada por TUTAMÉIA que reuniu a designer e cantora Marina Lutfi, filha de Sérgio e diretora geral e artística do acervo físico e digital Sérgio Ricardo Memória Viva, o músico e professor de história Rafael Rosa Hagemeyer, autor da biografia “Esse Mundo é Meu: As Artes de Sérgio Ricardo”, e já citado Daniel Paes (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Com 5.600 itens, o acervo digital dá uma ideia do que foi a produção de Sérgio Ricardo, muito além da música de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, 1964) ou do violão quebrado no palco contra as vaias no Festival Internacional da Canção, em 1967 (clique AQUI para visitar o site, de onde reproduzimos a foto que está na “capa” de TUTAMÉIA). Tem poesia, pintura, cinema, fotos, uma biografia simples, mas bem abrangente, que não foge dos momentos ruins –como os lembrados na entrevista pela filha, Marina Lutfi:

“Depois dos anos 1970, a relação dele com a indústria cultural começa a ser de muito embate. Ele é calado pela indústria, pela mídia, e começa a entrar no circuito independente, a tentar, por si só, produzir cultura. Não havia mais espaço para ele. Aos poucos, as pessoas iam desconhecendo.”

Um ostracismo planejado contra alguém que fez história na música e na cultura brasileira tanto pela qualidade de sua produção quanto pelo posicionamento aberto em defesa do povo, contra a opressão, como lembra o professor Hagemeyer:

“Ele não tinha convicções políticas no início da carreira. Por incrível que pareça, foi o João Gilberto que começou a falar com ele, numa madrugada em Copacabana, de que a vida não era tão bonita assim, que existia a luta de classes, e Karl Marx, o Capital… Justamente o João Gilberto!, considerado um dos mais alienados, naquele contexto abriu os olhos do Sérgio Ricardo para isso, e logo veio  “Zelão”, que é a primeira música de protesto. O José Ramos Tinhorão fala que dá para resumir a história da bossa nova entre “O Barquinho”, como a lírica, do poema, da flor, do mar, e “Zelão”, música que fala da realidade social, dos problemas da cidade, das classes populares. Sérgio Ricardo descortinou nesse momento um novo horizonte para a produção cultural de esquerda e vai mergulhar nisso como nenhum outro artista daquela geração mergulhou. Foi morar no Vidigal, trabalhar com a comunidade e ajudar na emancipação artística e social do povo brasileiro.”