“No Brasil, a esquerda é forte na eleição plebiscitária do presidente da República, como vimos duas vezes com Lula e duas vezes com Dilma. Mas é fraquíssima nos municípios e nos legislativos. É um gigante com pés de barro. O PT nunca teve sequer um sexto do Congresso Nacional. É por isso que governava com partido fisiológico. Não tem base política própria. Por isso foi colocado fora do governo por um piparote, um teatrinho jurídico, sem que houvesse resistência na rua. Não houve resistência popular ao golpe. Olhe para a Bolívia. A esquerda brasileira é fraquíssima perto do MAS (Movimento Ao Socialismo, partido que acaba de voltar ao poder um ano após o golpe que derrubou Evo Morales). Veja a Argentina. Os peronistas têm muito mais organização e presença política do que o PT”.

É o que afirma ao TUTAMÉIA o cientista político Armando Boito Jr. Para ele, a esquerda brasileira tem um problema estrutural:

“Nós precisamos organizar a população trabalhadora. Ter seções nos bairros, células nos locais de trabalho, núcleos como tinha o PT no seu nascedouro, por profissão, por moradia. E tem que levar educação política para essa massa. Não se pode deixá-la vulnerável frente à televisão, às fake news, ao rádio. É esse o trabalho mais profundo que as esquerdas têm que fazer no Brasil. Não vamos imaginar que a direita fosse muito fraca no Brasil e que a esquerda tivesse mais força do que realmente tem. Os resultados eleitorais e a triste experiencia do golpe de 2016, contra o qual houve fraquíssima resistência, mostram a necessidade de a esquerda brasileira refletir muito e, principalmente, tomar iniciativa no terreno da organização e da educação política dos trabalhadores”.

Professor titular de ciência política da Unicamp e editor da revista Crítica Marxista, Boito Jr. é um dos fundadores do Centro de Estudos Marxistas da Unicamp. Nesta entrevista, ele avalia os desdobramentos das eleições municipais, a conjuntura política e as possibilidades de cenários para 2022 (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

TRÊS POLOS NA DISPUTA POLÍTICA

Ressalta que a dinâmica da política brasileira mudou muito desde o golpe de 2016. “Quem desencadeou esse processo foi o denominado Partido da Social Democracia Brasileira. Eles romperam com o jogo democrático. Quem começou a guerra contra o resultado das urnas de outubro de 2014 foi o PSDB, com Aécio Neves”, assinala. A partir daí, ruiu o arcabouço básico que contava com dois lados no jogo político: PT e PSDB.

“Agora, em vez de dois lados, há três campos. O campo de esquerda, com PT, Psol e PCdoB. Depois a direita liberal, composta por Democratas, PSDB e diversos partidos, a direita fisiológica. A novidade agora é que há uma direita fascista. São três polos em termos de programa político: a esquerda mais desenvolvimentista, a direita neoliberal e a direita fascista. Então o jogo ficou mais incerto e mais complexo”.

Em cada um desses polos, enfatiza Boito, não existe mais um partido soberano. “Na esquerda, a relação interna de forças é muito instável. A hegemonia do PT está colocada em questão. O PSDB não tem mais aquela hegemonia absoluta que tinha no campo da direita liberal. Ele perdeu muito, e o Democratas cresceu muito. A situação era inversa nos governos FHC e Lula. No campo neofascista, que tinha um polo aglutinador no Bolsonaro e no PSL, isso também está se desfazendo. O Patriotas teve 10% dos votos em São Paulo, foi segundo colocado em Belém. O PSL fez 2% em São Paulo. O campo neofascista também não tem um partido que é hegemônico. Assim, a dinâmica é muito mais incerta, a correlação de forças é mais instável. Muito diferente da década de 1990 e de 2000”.

BOLSONARO E LULA DERROTADOS

Ao avaliar o resultado das eleições municipais, Boito destaca o desgaste de Bolsonaro, mas aponta a votação significativa que obtiveram candidatos da extrema direita em capitais como São Paulo, Belém, Fortaleza e Vitória (vencendo nesta última). “A extrema direita teve resultados eleitorais preocupantes para nós do campo democrático e popular. A extrema direita forte não é apenas a estritamente bolsonarista. O fenômeno do neofascismo no Brasil é um fenômeno mais amplo, mais heterogêneo e que deve ser examinado com cuidado. Assim como no nascimento do fascismo italiano tinha várias lideranças, vários grupos. Podemos estar caminhando para uma situação desse tipo”, adverte.

E segue:

“Não foi só o bolsonarismo que se deu mal na eleição. A esquerda também se deu mal. A esquerda foi derrotada. O PCdoB teve sua votação reduzida à metade. O PT perdeu prefeituras. O Psol cresceu um pouco, mas é um crescimento que não compensa as perdas do PT e do PCdoB. Houve derrota da esquerda. E não foi somente a figura de Bolsonaro que saiu desgastada; a do ex-presidente Lula também saiu. Candidatos apoiados pelo presidente Lula em Porto Alegre, São Paulo e no Recife foram derrotados. A figura política de Lula sai da eleição menor do que entrou também. Se não [vemos isso], vamos criar uma ilusão. E a ilusão não ajuda em nada o campo democrático e popular. O grande vencedor foram os partidos do chamado Centrão, que é a direita fisiológica”.

CUMPLICIDADE COM O FASCISMO

O professor da Unicamp fala ainda das circunstâncias que possibilitaram a ascensão de Bolsonaro, expõe o seu caráter destrutivo e trata da tentativa de golpe entre abril e maio deste ano, avaliando como se comportaram os agentes políticos. “Se é muito triste o Brasil se ver sob um governo controlado por um grupo de neofascistas, é triste também ver como os liberais e representantes políticos da burguesia são coniventes, são cúmplices desses atentados contra a democracia”, declara.

“A burguesia continua fundamentalmente unida em torno do programa neoliberal. Tem segmentos que fazem críticas, mas elas são pontuais. Contradições vão se acumular e crescer. O que eles não aceitam é o projeto máximo do neofascismo, que é a ditadura. Eles são ambivalentes: querem o neoliberalismo, aceitam o fascismo, mas sem um regime ditatorial fascista. Querem o Bolsonaro domesticado”, diz.

Para ele, é uma frente de esquerda que deve assumir o programa político de derrotar o neoliberalismo e o neofascismo. “Você não pode lutar contra o fascismo com um campo que não quer lutar contra o fascismo, que vive da ilusão de que é possível domesticar o fascismo. Com eles, não dá para integrar uma frente, mas convergir para lutas pontuais”.

Analisando as declarações recentes de atores políticos, afirma: “O Ciro está tentando formar um outro campo, com PSB, PDT. Não quer procurar aliança desse campo com a esquerda; quer procurar com a centro direita. O Dória quer ser o candidato da direita liberal. Com pandemia e desemprego, não sabemos se vamos chegar com tranquilidade a 2022”.