“Essa crise do coronavírus mostrou, mais do que a crise econômica de 2008, a falha estrutural do neoliberalismo, a enorme desigualdade social que ele exacerbou. O capitalismo cria a desigualdade, mas, na sua fase neoliberal, ela fica mais exacerbada. Não vejo muito qual vai ser a saída do capitalismo. Acho que, de fato, ele está em uma encruzilhada em que está ameaçado de morte.”

É a avaliação que faz o historiador Jorge Grespan em entrevista ao TUTAMÉIA (assista à íntegra no vídeo acima e se inscreve no TUTAMÉIA TV). Professor de teoria da história na USP, ele diz que a pandemia vem ampliar, com ares dramáticos por causa de sua letalidade, as dimensões que uma crise econômica vivida num mundo há mais de duas décadas.

“O que o coronavírus está fazendo é potencializar, exacerbar de uma maneira incrível aquilo que já vinha sendo apontado pela crise econômica. Está no contexto de uma crise econômica que começou já no final da década de 1990. A letalidade dela tem a ver com a capacidade de resistência física das pessoas e das instituições de saúde, que vinham sendo debilitadas já havia muito tempo.”

Ele lembra que as grandes mortandades por epidemias aconteceram em momentos que a humanidade estava enfraquecida, esfomeada, estressada. A chamada gripe espanhola, por exemplo, atinge o mundo no final da Primeira Guerra Mundial.

Hoje, o coronavírus despenca sobre um mundo que tem suas defesas enfraquecidas, “depois de duas décadas de neoliberalismo destruindo os sistemas de saúde, que viram no mundo inteiro um serviço muito bem pago”.  E segue: “Na Itália, na Espanha, nesses lugares onde a pandemia teve uma letalidade muito grande, é porque os serviços de saúde tinham sido precarizados”.

Há outros fatores: “Se, no século 14, as pessoas ficaram doentes porque comiam pouco, no século 21 as pessoas ficam doentes porque comem coisas erradas. Nossa comida está toda ela industrializada, e a indústria usa materiais e alimentos que têm uma carga muito grande de elementos químicos que envenenam as pessoas e reduzem a capacidade do organismo de se sobrepor a um vírus como esse”.

O que lhe permite então afirmar: “Não é só o caso de existir uma nova doença. Ela não caiu do céu, não é um meteoro que caiu na Terra. Isso é algo endógeno, é algo que tem a ver com toda a estrutura capitalista dos últimos 20 anos, e tem a ver também com o modo como o capitalismo está sendo gerido nos últimos tempos, dessa maneira austera, neoliberal”.

PARA ONDE VAMOS

Com o que a entrevista segue para o debate sobre saídas, desdobramentos para a crise. Grespan nem de longe acredita que haverá uma recuperação mágica da bondade humana ou que o espírito da solidariedade descerá sobre o planeta.

“O capitalismo não pode voltar à forma antiga, que é a social-democrata. Precisa criar uma fórmula nova, mas isso não está à vista. A crise vem desde 2008, e não há nenhuma fórmula nova à vista. Então, dá-lhe neoliberalismo”.

O que significa dizer que, ainda que pensadores neoliberais apontem hoje a necessidade de apoio do Estado para o enfrentamento à crise, eles não se transformaram de repente em keynesianos. Ao contrário, depois deverão seguir pela mesma cartilha, ainda mais aprofundada: “A solução que eles apontam é mais neoliberalismo, mais desigualdade social, mais submissão do trabalho ao capital”.

Nisso tudo tem um porém, aponta Grespan:

“As formas de sociabilidade capitalistas, basicamente a vida comercial, a mercantilização, a proletarização da força de trabalho, o próprio uso de dinheiro, o dinheiro sem lastro em uma mercadoria, o dinheiro completamente fiduciário –e agora não tem mais “fidúcia”, ou seja, não tem mais confiança para sustentar esse dinheiro–, e os Estados também estão se desfazendo… Por um lado, aumenta o autoritarismo, por outro lado a fonte de legitimação daquilo que Gramsci chamava de hegemonia, de capacidade de direção está se perdendo, se corroendo. Fica só o lado da força bruta, da truculência, perde justamente essa dimensão da hegemonia”.

O resultado é que “cada crise econômica dessas mostra justamente a incapacidade do capitalismo de continuar presidindo a vida. Já está acontecendo isso. Em 2008 aconteceu muito forte. Houve uma recuperação para alguns, mas uma grande parte do mundo continuou submergida na crise. E agora está para todo mundo. Esse ciclo de crise econômica, e agora da saúde, da vida –é uma crise da vida. Isso mostra muito bem o quanto oi capitalismo não é capaz de ser um modo de vida viável. Está claro que alguns vão pagar uma conta muito mais alta. Então, vai ter de se repensar tudo. Vai ter de surgir alguma alternativa.”

O QUE DIRIA MARX

A ideia de voltar a entrevistar Jorge Grespan –que já esteve no TUTAMÉIA, falando sobre a MANIFESTO COMUNISTA, como você pode ver CLICANDO AQUI— surgiu do fato de, em muitas entrevistas recentes, o entrevistado, ao comentar a crise econômica e sanitária que vivemos, usou a frase “tudo que é sólido desmancha no ar” para descrever nossa situação, em que o mundo parece estar desmoronando –ou está mesmo.

A tal frase, tão elegante, aparece em um trecho do MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA, escrito por Karl Marx e Friederich Engels e publicado em 1848. Está lá, quando descrevem o mundo tomado pela burguesia: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.

Autor de “O Negativo do Capital (1996) e de “Revolução Francesa e Iluminismo” (2003), Grespan é um dos grandes especialistas brasileiros na obra de Marx. Por isso, perguntamos a ele sobre o contexto da frase e o que tudo aquilo.
Fala o professor:

“A frase está numa trecho que é uma bela narrativa, uma descrição muito plástica que Marx e Engels fazem sobre a capacidade do capitalismo de destruir todas as bases, sólidas, sobre as quais se apoiava o antigo regime; derrubar os resquícios feudais. Eles escrevem “tudo que é sólido desmancha no ar”, e logo dizem “todo o sagrado se torna profano”. Não há mais nada sagrado; o capitalismo tem condições destruir toda essa sacralidade do mundo feudal, monárquico. Em seguida, numa virada sutil, mas irônica, vão mostrando como o capitalismo é capaz de destruir a si mesmo, porque, afinal, aquilo tudo que ele põe momentaneamente como sólido ele também vai fazendo evaporar. Ele próprio tem em si essa potência autodestrutiva”.

Grespan vai além, lembrando de uma curiosa semelhança com os tempos que vivemos hoje:
“Uma página depois de terem feito essa descrição do capitalismo, Marx e Engels comparam as crises econômicas e políticas a uma epidemia. Eles chamam as crises de “uma epidemia social”. Interessante porque, como a epidemia, as crises são contagiosas. A crise econômica começa às vezes em um setor da economia e acaba contagiando todos os outros setores, começa em um país e acaba contagiando todos os outros. E com isso a crise vira uma verdadeira epidemia.”