Oziel Pereira, de 17 anos, foi um dos últimos a morrer. Espancado, preso, algemado, recebeu um tiro na testa. Seu corpo se somou aos de outros 18 assassinados ali, na Curva do S, no crime que ficou conhecido como o Massacre de Eldorado de Carajás. Outros dois trabalhadores rurais sem terra, não resistiram aos ferimentos e morreram dias depois. No total, 21 homens assassinados.

O crime se deu em 17 de abril de 1996. Para homenagear a memória dos que caíram e a resistência dos que ficaram e ficam e continuam e seguem imprescindíveis, a Via Campesina Internacional instituiu o 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa. No Brasil, decreto assinado pelo então presidente da República, FHC, tornou a data Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. E o MST fez de abril o mês de nossa Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária.

Tutaméia realizou programa especial neste 17 de abril do Ano do Coronavírus para lembrar os que se foram e ouvir as lições do que ficaram. Para isso, Eleonora e Rodolfo apresentaram entrevista e vídeos que fizeram quando das homenagens nos vinte anos do massacre, em 2016. Os jornalistas tutaméicos estiveram lá na Curva do S, onde o MST realizou um encontro nacional da juventude sem terra.

A visita fez parte do projeto MARATONANDO COM O MST, que você pode conhecer melhor CLICANDO AQUI.

No programa especial, apresentamos entrevista com RAIMUNDO GOUVEIA, um dos líderes do assentamento 17 de Abril e sobrevivente do massacre. Na época, em 2016, fizemos uma grande reportagem sobre ele, que reproduzimos agora como homenagem ao Dia Internacional da Luta Camponesas e às vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás, crime até hoje impune.

Raimundo Gouveia no assenatmento 17 de Abril, no Pará – Fotos Eleonora de Lucena/Tutaméia

CABRA MARCADO PARA MORRER

por Rodolfo Lucena, maio 11, 2016

Tinha por nome audiência, mas de fato foi um Conselho de Guerra. O governador do Pará, Almir Gabriel, ao lado de seus secretários da Segurança, Paulo Sette Câmara, e do Interior e Justiça, Aldir Viana, receberam fazendeiros do sudeste do Estado.

Os latifundiários foram convocados para a reunião pelo Sindicato dos Produtores Rurais de Curionópolis, pelo Sindicato dos Ruralistas de Marabá e pela Federação dos Fazendeiros do Estado do Pará.

Agitados, os ruralistas exigiam do governo ação direta contra as mobilizações dos sem terra na região. Pulso firme!, dureza!, era o que reclamavam. Entregaram ao secretário da Segurança uma lista de 19 nomes de líderes considerados mais perigosos, segundo relata o livro “O Massacre”, de Eric Nepomuceno.

Entre os nomes, três eram apontados com principais lideranças: Oziel Alves Pereira, Graciano Olímpio de Souza e Raimundo Gouveia.

Oziel e Graciano foram dois dos 19 sem terra assassinados na Curva do S em 17 de abril de 1996, cerca de um mês depois do encontro entre o governador do PSDB e os líderes do latifúndio.

Raimundo Gouveia está vivo e forte. Aos 61 anos, preside a Associação de Comercialização dos Trabalhadores Rurais do Assentamento 17 de abril, representando 690 famílias de camponeses que não só sobreviveram ao massacre como também conquistaram a terra que lhes era negada.

É um sujeito de aparência calma e fala pausada, que se entusiasma com os preparativos para a corrida de crianças que organizamos na praça principal da agrovila. Enquanto discutimos horário e percurso, eu lhe pergunto por que era considerado tão perigoso.

“Eles acham perigoso quem mais se destaca organizando o povo, que mais tem ideia. Não justifica isso. Perigoso que eu sei é aquele que mata, que assalta, que rouba. Mas na cabeça deles os militantes são os perigosos porque eles acham que quem organiza o povo para fazer ocupação.”

Nos idos de 1996, como hoje, Raimundo se destacava pela capacidade de organização: “Meu trabalho era mais na coordenação, organizar grupos, fazer estudos, preparar para fazer estudos. Atuava muito bem na frente de massas”.

Vai daí a perseguição.

“Eles acham que a gente é perigoso porque fica fazendo esse trabalho de conscientização. A frente de massas é um setor dentro do MST muito perseguido porque é quem organiza a massa mesmo. Na luta! Faz a ocupação. Para o que der e vier mesmo. Massa. Peita. Eles acham que tirando esses acaba o movimento. Nosso movimento é muito grande. Eu também me identifico muito bem com o setor de produção, mas eu era muito de massa mesmo. Ia para a porrada mesmo. Pegava o microfone, pau mesmo!”

Sede da associação de moradores do assentamento 17 de abril, onde moram Raimundo Gouveia e outros sobreviventes ao massacre

Na época com quarenta anos, Raimundo Gouveia já tinha então bastante experiência de trabalho sindical. Filho de trabalhadores rurais de Bacabal, Maranhão, diz que já nasceu trabalhando em terra dos outros. E cedo aprendeu que era necessário reivindicar para melhorar.

“Toda a minha família sempre foi envolvida nas lutas sindicais. Antes de conhecer o MST. Quando eu me criei, quando eu tive entendimento, meu pai já era envolvido na questão do sindicato. Eu achei que era o caminho. Por isso que a gente ingressou. Tenho irmão que continua na luta, sindicatos, associação, cooperativas, grupos de jovens, onde discutem melhorias do povo. Eu mesmo iniciei na igreja católica. Sempre se reunir com grupos de jovens, falar o que a gente tinha que fazer, fazer grupos de trabalhos coletivos, ajudar alguém. Sindicato também junto. A gente começou na luta desde novo.”

Com vinte anos, saiu da vida na lavoura para tentar a sorte no garimpo. Foi o único dos sete irmãos a se aventurar. A experiência não foi muito positiva.

“Passava o dia num garimpo, outro noutro. Voltei de novo para o Maranhão. Fiquei por lá, de lá eu peguei a família e fui para o Oeste do Pará, na região de Altamira. Lá acabei entrando no sindicato, virei liderança sindical, na região da Transamazônica. Trabalhava na igreja, participava dos encontros da igreja, de jovens. A gente foi amadurecendo na questão do trabalho sindical. A gente trabalhou mais uns 15 anos no movimento sindical.”

Plantava arroz, milho, mandioca. E fazia política: “Ingressei no PT, comecei a trabalhar na questão de organizar o PT nas comunidades, de base, e minha vida mais foi essa, trabalhar na luta sindical, das organizações de classe.”

O clima na região ficou pesado. “A gente recebia ameaças. Vinha alguém e falava: `Não pode fazer isso, vocês estão se organizando. Não pode fazer isso, fulano amanheceu com a boca cheia de formiga, você pode também.`  Uma ameaça desse tipo. Dando um recado para a gente. `Para com isso. Você não pode mexer com isso. Fulano já morreu, Beltrano já morreu, só por causa disso. Estou avisando.’ Esse tipo de coisa.”

Com mulher e seis filhos, Gouveia achou melhor mudar de ares. “Saí de lá para amenizar um pouco. Eu vim, passei uns tempos com a intenção de voltar. Mas, quando eu cheguei, eu conheci o MST aqui. Eu entrei no MST, me convidaram. Fiz o cadastro em 1996. Direto mesmo para essa área, que é a antiga fazenda Macaxeira.”

A Macaxeira era um complexo que reunia quatro propriedades, onde Plínio Pinheiro Neto, filho de Otília Pinheiro, engordava gado. No total, as fazendas Castanhal Macaxeira, Castanhal Fundos de Macaxeira, Castanhal Volta do Rio e Castanhal Grota Verde somavam mais de quarenta mil hectares.

No dia 5 de novembro de 1995, a fazenda foi ocupada por cerca de dez mil trabalhadores rurais. A área já tinha sido reconhecida por fiscais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) como “passível de desapropriação”.

Antigamente, densos castanhais tomavam a área  –chegou até a haver um “ciclo da castanha”. No final de 1995, porém, o que restava dos castanhais eram troncos queimados e vastas pastagens ocupadas por ninguém.

“Os camponeses trabalhavam nas fazendas alheias, ganhando mixaria, sendo chicotado pelos jagunços. Antigamente na região aqui, a maior parte dos trabalhadores era chicotada nas fazendas. Não foi muito fácil nessa região aqui. Uma região muito malvada para os trabalhadores”, conta Gouveia, que tem muitas lembranças de sofrimento no trabalho.

“Onde eu era sindicalista, ajudei muito a defender os companheiros. Denunciar. Eu vi trabalhador preso, apanhando, outros mortos. Não é coisa que me contaram. Eu vivi. No Estado do Maranhão, eu vi pessoas lá, comendo capim, na fazenda, botados pelos jagunços, porque tinham matado uns porcos lá. Estavam comendo a roça dele. Lá você cercava a roça com pau a pique, mas os porcos varavam, comiam a roça. O trabalhador matou, foi obrigado a comer capim.”

Precisava melhorar: “Eu trabalhava na terra dos outros. Pagando meia, dividido. Quando não dava o legume, estava ruim, mas para o patrão tinha que dar. Não importava a gente ficar sem nada não, mas ele ficando com o dele… É muito difícil, o que nós já passamos. Melhorou um pouco? Melhorou daquele tempo para cá. Por quê? Pela nossa luta”.

Para Gouveia, a luta quase teve como prêmio a morte. No dia 17 de abril de 1996, ele estava com a mulher e dois filhos entre os cerca de 3.000 camponeses que foram atacados pela polícia e por jagunços na Curva do S.

“Foi horrível. Eu não gosto nem de falar assim, porque a gente sente a emoção. Foi muito doido. Lá chegou a polícia para tentar negociar conosco, para barrar nossa caminhada, para a gente sair da estrada. Eles estavam querendo amansar o povo.”

Não teve diálogo, não houve negociação.

“Nós fomos cercados. Eles chegaram atirando. Eu pensei que era assim, bala de borracha, ou outra coisa qualquer para espantar a gente. Mas eu vi um caindo nos meus pés. Caiu de bruços, virei vi que a bala tinha pegado assim nele e já… Eu vi que eles estavam matando. Acho que eles chamaram: “Vagabundo! Entra na terra dos outros, vou matar todo mundo!” Xingando e atirando e aquele ódio. Quando eu vi isso, nós fomos para o mato. Eu, a minha esposa e dois filhos. Nós corremos para o mato. Lá do mato a gente escutava os tiros direto, e os xingamentos. Atirando e xingando. “Bando de filha da puta! Invadir terra dos outros! Vou matar é tudinho.” Tá-tá-tá-tá-tá. E aí meu amigo, nós saímos mais ou menos um quilômetro longe de onde estava acontecendo, na estrada. Pegamos uma carona e fomos para a cidade, para Eldorado. É um momento muito difícil assim. Muito feio. Muito difícil.”

Gouveia interrompe o relato, suspira, olha para longe. Volta.

“Falar do Massacre esses dias não é muito bom para nós. A gente sempre fica lembrando o que aconteceu, tiraram a vida de 19 pessoas, outros morreram depois. Não é brincadeira. Deixar viúvas. Deixar os filhos. Se a gente tivesse ali querendo fazer o mal, mas não era fazendo o mal. Estava lutando por uma causa justa e nobre.”

Justiça, por sinal, que não houve. Nenhum dos que deram a ordem para o ataque –o então governador Almir Gabriel e os secretários de Segurança e do Interior e Justiça—sequer foram indiciados no processo. Dos 155 policiais levados a julgamento, foram condenados apenas os dois comandantes, o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira.

“Até hoje esse crime está impune”, denuncia Gouveia. “Isso mostra que, para a Justiça, quem tem valor é quem tem dinheiro. Naquela época, a gente tinha 40 anos, hoje eu tenho 61. Nunca aconteceu nada. Quantas pessoas não estão presas que são inocentes? Por que não prende quem matou 19? Não entendo isso. Você vê a perseguição que tem no Brasil contra alguns dirigentes nossos. Por causa de alguma coisinha você vê o povo vir para cima. A mídia. A justiça. Mas uma coisa dessas fica abafada. Não entendo o por quê. Esse Brasil é nosso. Não é de quem tem dinheiro. É nosso.”

Foi o que as famílias de resistentes demonstraram em 1996. Ficaram na terra, apesar da chacina e do terror imposto sobre os camponeses. E acabaram conquistando lotes em que hoje trabalham, têm escolas e uma vida comunitária.

Em volta da praça, no centro da agrovila, fica a sede da associação comandada por Gouveia. Ao lado dela funciona um telecentro comunitário. No fim da tarde, adolescentes se acotovelam no duro banco de madeira numa varandinha em frente ao telecentro, dedilhando seus celulares em busca de sinal internético.

Ali é o melhor lugar da vila para contatar o mundo nas ondas da internet (a escola Oziel Alves Pereira também recebe um bom serviço de internet, mas é apenas para uso interno). Nem sempre funciona, e os responsáveis pela manutenção não são exatamente os mais ágeis do mundo –a associação está sempre reivindicando melhor atendimento.

“Estamos aí, sobrevivendo. Não muito bem, como deveria ser. Falta uma reforma agrária competente. Nós estamos aí sem estrada, estamos sem ponte, saúde miserável, educação mal. Segurança zero. Nós estamos tentando sobreviver no meio de todo esse aparato que tem aí, que nos prejudica, que quer nos acabar. Não vamos nos acovardar mediante os burgueses que sempre querem nos maltratar, nós não vamos baixar a cabeça. Apesar de ser muito perseguido, de vez em quando morre um. Não vamos parar. Vamos para a luta! Não é fácil. Viver na terra sem crédito, sem assistência técnica, sem saúde, não é brincadeira. É difícil. Mas como a terra é nossa mãe, foi Deus que disse, é nossa mãe, por isso que nós ainda estamos sobrevivendo. Planta a batata, você come, planta um milho, planta qualquer coisa, tem um leitinho para você beber, as crianças. Nós não temos uma assistência voltada para o campo. Nós não temos um sistema, um projeto, um programa de mecanização para os trabalhadores plantarem. O grande tem. Nós não temos. Por quê? Eu não entendo. A terra é nossa.”

Na terra, cada uma das 690 famílias de assentados produz um pouco para sobreviver. Plantam milho, macaxeira; muitas família investem em criar algumas cabeças de gado para engorda ou para tirar leite.

“Dá para sobreviver, mas não é muito.”

Corrida com crianças do assentamento 17 de Abril, no Pará,  parte do projeto MARATONANDO COM O MST

De fato, isso se percebe ao ver as crianças que se reúnem na praça para participar da corrida. Estão aparentemente saudáveis, mas se vestem como é possível. Entre as dezenas à minha volta, não consegui ver nenhuma com calçado de corrida; há gente até de botas de trabalho, pois desde cedo as crianças também ajudam nas lides do campo. Ainda que trabalhem, porém, estão todas na escola.

Todas ficaram sabendo da corrida que acontecera na manhã, na EMEF Oziel Alves Pereira. Algumas vieram para uma segunda etapa; outras vão experimentar pela primeira vez o desafio.

Juntamo-nos no centro da praça, os pequenos e mais Gouveia e ainda Haroldo de Oliveira, responsável pela sistema A Voz, serviço comunitário de comunicação por alto-falantes. Também estão conosco o seu Laurindo, trabalhador veterano das lutas camponeses, e mais alguns adultos.

Os adultos, porém, vieram apenas para o aquecimento, a concentração. Na hora da largada, as crianças desembestam pelas ruas de terra do assentamento –apesar de seus 18 anos de existência, a agrovila ainda não tem calçamento.

É uma alegria só. Riem-se os adultos sentados nos bancos de madeira em frente à associação, riem-se os que ficam na praça olhando o movimento, e nós também gargalhamos por dentro, correndo com as crianças que, por poucos minutos, se transformam em donas das ruas do assentamento 17 de Abril.

No final, todas se reúnem em torno de Gouveia. Querem saber quando haverá outra corrida. “Amanhã, amanhã!”, pedem as crianças, e ele promete: “Logo, logo…”

Vamos ver. Com corrida ou não, o certo é que vai continuar a luta pela terra e por melhores condições de vida.

Gouveia, um dos marcados como especialmente perigosos na lista que, há vinte anos, latifundiários da região entregaram aos governantes, avisa que segue na batalha por justiça:

“Muitas pessoas discriminam a gente por algumas coisas que a gente faz. Algumas ocupações que a gente faz. Algumas mobilizações. Eu como dirigente dessa organização não me conformo. Que nós temos de ficar mais pobres, e o rico mais rico, não me conformo. Não vou me conformar nunca. Por isso eu continuo nessa organização do MST, continuo lutando, ocupando terras e fazendo o que for possível para defender nossos direitos.”