“Os EUA, sem dúvida nenhuma, tiveram uma derrota importante do ponto de vista político, estratégico. Ser aliado dos EUA passou a ser algo de alto risco. Não é fácil agora ter uma aliança e confiar na política americana tão facilmente. Isso implica, mesmo do ponto de vista da reprodução do capital, que a França, a Alemanha ou o complexo industrial russo ou chinês vão ter mais prestígio e vão competir com o complexo industrial americano. Por que você vai comprar ou assinar acordos militares com os EUA se você não tem garantia política dos EUA? Talvez seja melhor assinar com a França ou com os chineses. Então a própria reprodução do capital é atingida pela falta de garantias políticas daí decorrentes”.

A análise é do historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, em entrevista ao TUTAMÉIA, ao tratar das consequências da vitória do Taleban no Afeganistão. Na conversa, ele avalia o papel crescente da China na Ásia e no mundo, os impactos para o Brasil e a América Latina e diz que há possibilidade de uma guerra no Pacífico entre norte-americanos e chineses, nos próximos cinco anos (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

EXCLUSÃO DOS EUA E PAX SÍNICA NA ÁSIA CENTRAL

Pós doutor em história política e social e professor titular de história moderna e contemporânea na UFRJ, ele disseca os interesses dos atores envolvidos na questão afegã:

“Aos chineses interessa agora manter o status quo. É possível que emerja de toda essa situação –depois de 20 anos de guerra americana somados a 10 anos de guerra soviética–, uma Pax Sínica, uma paz chinesa, se estabelecendo sobre a região. Isso surgiria com naturalidade da condição da China de potência hegemônica na região e da capacidade chinesa de se servir dos seus meios econômicos para impor aos seus parceiros condições favoráveis”.

Chico Teixeira completa:

“Os EUA estão excluídos da região agora. Seus parceiros mais próximos, como a Índia, têm poucos meios de atuar na região. Os EUA não têm mais um parceiro direto na Ásia Central. Temos o Irã, a Rússia, o Paquistão e a própria China como os principais atores. Todos eles desejam a mesma coisa: a exclusão dos EUA da Ásia Central”.

LOBBIES NORTE-AMERICANOS PREOCUPADOS

O historiador contesta visões que relativizam a derrota dos EUA, apontando os ganhos que o complexo industrial e militar abocanha em qualquer hipótese:

“A ideia de que o capital não tem pátria e acaba sempre vencendo –pouco importam as consequências políticas– não é bem real assim. O capital não tem pátria, mas tem interesses, sustenta alguns governos”, diz.

Para ele, “a única coisa razoável para os EUA em todo esse desastre seria lançar os talebans contra a China”. No entanto, como se viu, a China já estava conversando com o Taleban antes da queda de Cabul e, provavelmente, negocia recursos financeiros para a estabilização econômica e reconstrução.

“Grandes lobbies norte-americanos ficam preocupados com o que acontece no Afeganistão. Isso pode levar a uma descrença geral em relação a essa postura americana perante alguns de seus grandes aliados americanos, como Formosa, Japão, Austrália, Índia –que fez uma aliança com os EUA para a contenção da China. A parte rica da Ásia ficou muito preocupada sobre qual é a profundidade do compromisso americano”, observa.

DECADÊNCIA DOS EUA?

A derrota no Afeganistão aponta para uma decadência dos Estados Unidos?

Chico Teixeira responde:

“Os EUA são uma grande nação. O problema é que o mundo cresceu. Em 1950, o PIB norte-americano era praticamente a metade do PIB do mundo inteiro. Isso era arrasador. Hoje, o PIB dos EUA deve ser algo entre 11 e 12% do PIB do mundo. É notável, mas os Estados Unidos não são mais os Estados Unidos de 1950. Surgiram outras nações com grandes economias e com grandes centros de inovação tecnológica disputando espaço no mundo. Isso não quer dizer que os EUA estão em decadência. É uma mudança do mundo. É o mundo que está mudando”.

GUERRA COM A CHINA EM CINCO ANOS

Nesse quadro, para o professor da UFRJ, “ou os EUA se adequam a esse mundo em mudança ou nós vamos ter choques muito violentos daqui em diante”.

Ele segue:

“O principal desses choques é aquele de ascensão de novas potências em dimensões mundiais. E aí é inevitável o choque com a China. Ou os EUA reconhecem a China como uma grande potência e sentam para discutir com a China e deixam de tratar a China como uma potência de segunda ou terceira categoria, ou, nos próximos cinco anos, nós vamos ver uma guerra de grandes proporções entre a China e os EUA”.

Chico Teixeira continua:

“A China tinha uma política de construção de uma grande potência, de realização de reformas internas, de construção de um sistema de bem-estar social. Uma política de defesa militar atuante não era o objetivo principal da China”.

“Nos últimos dez anos, principalmente a partir do governo Obama, a China foi provocada insistentemente pelos EUA a dedicar cada vez maior parte do seu orçamento para defesa. Os EUA entenderam que era inevitável que, num espaço de tempo de vinte anos, a China desafiaria o poderio americano na área do Pacífico. Os EUA decidiram que isso não será aceitável e isso se tornou uma política nacional do estado americano em relação ao Pacífico”.

Daí a aliança entre EUA, Japão, Austrália, Índia e Inglaterra para deter e cercar a China. “A China teve que refazer a sua política –inclusive a política de construção de moradias e de eletrificação para aumentar o gasto na defesa militar do país”.

Na análise de Chico Teixeira, o enfrentamento entre China e EUA (sem tocar nas áreas continentais, inclusive o Havaí, e sem uso de armas atômicas) deverá acontecer nos próximos cinco anos:

“Em mais do que cinco anos será muito difícil para os EUA fazerem esse enfrentamento. Nos próximos cinco anos, os Estados Unidos ainda terão condições de fazer o enfrentamento e vencê-lo. Depois, dado o ritmo de modernização da defesa chinesa, esse enfrentamento será mais custoso, e as condições de vitória dos EUA serão mais duvidosas”.

VISTA DE SULLIVAN A BOLSONARO FOI ATO DE GUERRA

Enquanto os EUA faziam a guerra no Afeganistão, a China tomava mercados pelo fundo, inclusive dominando o comércio na América Latina e no Brasil. Qual seria o impacto aqui desse confronto?

“Uma atuação mais agressiva contra a China implica diretamente numa agressão contra a Venezuela e numa ação mais direta no Brasil. Não é à toa que o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, tenha vindo ao Brasil falar com Bolsonaro sobre o 5G. Desde quando um assessor de segurança nacional vem discutir uma decisão de mercado com o presidente de outro país? É um ato de guerra literalmente. Ele veio pedir um bloqueio das empresas chinesas no Brasil”.

EUA NÃO QUEREM ESQUERDA NO PODER NO BRASIL

Na avaliação de Chico Teixeira, o aumento na tensão entre China e EUA vai resultar em atos cada vez mais intensos de represálias políticas diretas dos EUA na América Latina. E, é claro, os norte-americanos tentarão interferir no processo eleitoral brasileiro:

“Um presidente de esquerda, social-democrata, que fale com todos os líderes da América Latina, que recoloque os Brics em funcionamento não interessa aos EUA. Brics, conselho de defesa sul-americano, Mercosul — é tudo que os EUA não querem ver retomar nesse momento”.

EMPRESÁRIOS KAMIKASES

E como explicar o apoio de parte do empresariado a Bolsonaro se o governo atua contra os chineses, que são o maior parceiro comercial do país e detêm tecnologia mais avançada que pode beneficiar os negócios?

“O empresário brasileiro é kamikaze. Não entendeu nada. Ele é capaz de ser o principal vendedor de carne refrigerada para a China e defender o boicote à China. Precisava colocar os caras em curso intensivo de política externa ou geopolítica para eles saberem defender os interesses deles. Tem que colocar o cara numa geladeira para que ele não destrua o negócio dele”.