“O legado de Iara é que sempre que houver uma situação com que a gente não concorde, nós devemos lutar contra essa situação. Como é hoje. Nós vivemos uma situação que deve ser combatida. Nós temos de lutar contra o Bolsonaro. Esse é o legado: se existe um governo contra o povo, vamos lutar contra esse governo.  Hoje a situação é outra, nós vivemos numa democracia, mas temos um governo que não serve para o povo brasileiro. Vamos lutar contra esse governo, não vamos aceitar esse governo. Acho que o legado da Iara é este: lutar pelos interesses do povo, por uma vida melhor para o povo brasileiro. Não aceitar um governo antipovo nem o que um governo antipovo decreta ou tenta decretar.”

São reflexões do fotógrafo Samuel Iavelberg, conversando com TUTAMÉIA no 50º aniversário do assassinato de sua irmã, Iara Iavelberg, morta pela ditadura na Bahia em 20 de agosto de 1971. Samuel, também militante da resistência ao regime militar, conta na entrevista os primeiros passos de Iara na política, defende a opção pela luta armada na época e lembra ações em que participou com Carlos Lamarca (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Sobre Iara, ele diz: “Ela era uma pessoa normal. Interessada, avançada, ela realmente do ponto de vista de feminino, liberdade da mulher, era avançada para a época. Era uma pessoa normal, interessada culturalmente, que resolveu assumir a militância e enfrentou até as últimas consequências”.

INÍCIO DA MILITÂNCIA

Nascida em 1944, Iara era um ano mais velha do que o irmão. Os dois entraram praticamente juntos na faculdade, onde desabrocharam para a luta política, impulsionados pela resistência ao golpe militar de 1964.

“Éramos quatro irmãos: a Iara, eu, o Raul e a Rosa. O Raul também foi militante, foi exilado. Iara e eu acabamos estudando na mesma faculdade, porque naquela época a psicologia era um departamento da Faculdade de Filosofia. Eu estudava física, que também era um departamento da Faculdade de Filosofia.”

Ele segue: “Quando entramos na faculdade, nós éramos politicamente alienados, nós nunca participamos de movimento secundarista. Com 17 anos, em 1964, eu não tinha a menor noção de política. Aí veio o golpe, começaram aquelas assembleias, eu comecei a participar, ouvir e comecei a ter uma visão política do que acontecia no Brasil. Em pouco tempo, conheci os irmãos Sader, Emir e Eder, logo fui fazer uns cursos de orientação política. Logo em seguida eu comecei a participar mesmo nas assembleias, e em pouco tempo eu comecei a militar na Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária), e ela também. Foi assim que a gente começou”.

Iara em Campos do Jordão, na lua de mel de seu primeiro casamento

MULHER EMANCIPADA

Continua: “Eu e a Iara nos tornamos muito ativos no movimento estudantil, eu era uma das pessoas que falavam em nome da Polop, a Iara também. Participamos de manifestações, passeatas, invadimos a Maria Antônia. Tudo o que aconteceu de 64 até 67, eu e a Iara participamos no movimento estudantil. Nós só paramos de participar quando foi criada a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária, organização em que Lamarca atuou)”.

Uma das atividades era o trabalho no cursinho pré-vestibular mantido pelo grêmio da Faculdade de Filosofia: “A Iara dava aula de psicologia para quem era vestibulando de psicologia. Ela já era uma mulher emancipada, tinha toda uma visão do papel da mulher na sociedade, e as aulas dela eram muito interessantes, eram tão interessantes que o pessoal que não precisava assistir às aulas dela assistia. Depois de um tempo, começou um boca-a-boca, e foi um problema porque estudantes que faziam cursinho para ciências sociais, letras, história queriam assistir à aula dela e não assistir à aula que estava programada. Chegou um momento que tivemos de falar: não dá mais, quem vai assistir às aulas da Iara são só as pessoas que precisam da aula dela para o vestibular”.

LUTA ARMADA

Para eles, porém, ficou evidente que a resistência não poderia se limitar às assembleias estudantis, conta Samuel: “Logo no começo a gente já tinha uma visão que não ia derrubar a ditadura por meios pacíficos, o que era uma orientação da Polop, que ainda era muito verbal. Nós fomos influenciados não só pela revolução cubana, mas principalmente pelo livro do Régis Debray, que falava do foco guerrilheiro. Havia um setor da Polop que achava que devia partir, começar se organizar para realmente fazer luta armada. Esse setor entrou em contato com militares que estavam no MNR, Movimento Nacionalista Revolucionário, e começou a se organizar com esses ex-militares, o que acabou originando a VPR”.

Foi também uma reação às posições de parte da esquerda da época: “A gente chegou à conclusão de que, por meios pacíficos, por meios eleitorais, não tinha chance nenhuma de mudar a situação do Brasil. Nós tínhamos uma visão muito ruim do Partido Comunista Brasileiro, nós sabíamos que em várias coisas o Partido Comunista se adaptava a certas situações, a certas leis que a ditadura ia impondo. O Partido Comunista, que era majoritário, tinha dominado todo o movimento antes do golpe, não ia combater a ditadura do jeito que a gente achava que devia combater. A gente chegou à conclusão de que a ditadura tinha de ser enfrentada. E a gente não via maneira legal de combater a ditadura, então achamos que deveríamos fazer a luta armada. Infelizmente nós cometemos muitos erros, e a diferença de poder era muito grande. Perdemos, não deu certo, mas até hoje eu não me arrependo de nada e continuo achando que a solução era a luta armada. Dizer que a luta armada foi responsável por um monte de coisas repressivas, isso é bobagem. A ditadura endurece quando quer. Com ou sem luta armada, a toda a ditadura faz o que bem entende.”

IARA E LAMARCA

Samuel fala sobre algumas das ações armadas em que participou. Em várias delas foi o motorista de Lamarca, o Capitão da Guerrilha. E conta como ficou sabendo que Iara e Lamarca estavam juntos, eram um casal.

“Foi numa situação muito especial quando eu soube que eles estavam se relacionando. Não sei como começou, sei como eu fiquei sabendo. Eu morava em Moema (zona sul de São Paulo), ainda na casa para onde tinha levado os fuzis trazidos pelo Lamarca quando saiu do quartel. O Lamarca tinha um problema físico, de musculatura, tinha dores no corpo, e ele precisava passar por uma consulta médica. Aí eu peguei o Lamarca, levei o Lamarca para minha casa, e a Iara apareceu junto. Eles estavam juntos.”

Ele segue: “Levei os dois para a minha casa, depois fui buscar um médico, que examinou o Lamarca, para ver o problema que ele tinha, parece que era um problema inflamatório. Depois eu levei o médico embora. Como eu ia levar Lamarca e a Iara no dia seguinte para algum lugar, um ponto qualquer, para ele ser recolhido, eu constatei naquele dia que eles tinham um relacionamento. Eles estavam lá em casa, eu vi que eles estavam juntos”.

Por causa das exigências da clandestinidade, os dois irmãos quase nunca se viam, cada um dedicado às atividades propostas pela organização. As poucas conversas aconteciam exatamente em algum compromisso político.

A história segue assim, lembra Samuel Iavelberg:

“O Lamarca tinha de sair de São Paulo, precisava ir para o Rio de Janeiro. Então nós montamos toda uma operação para levá-lo ao Rio, clandestino. Fui com meu carro, eu, minha ex-companheira, a Iara e o Lamarca, nós fomos juntos. Naquela época, a via Dutra era uma via de mão dupla, e tinha muitos bloqueios, muita coisa policial. Para nossa garantia, o meu irmão seguia na nossa frente, com quinze ou vinte minutos de diferença. Tinha a missão de nos avisar: se houvesse alguma barreira, alguma coisa policial, ele tinha que parar, ir para o outro lado, na direção contrária e ficar parado. Para nós, a viagem toda era olhando na contramão, no acostamento. Se o meu irmão estivesse parado lá era porque tinha bloqueio. Não teve bloqueio, a gente levou Lamarca para o Rio. Foi a última vez que eu vi o Lamarca e a Iara.”