por MARIA DA GRAÇA PINTO BULHÕES, doutora em Sociologia e ex-aluna de Chico de Oliveira
e BENEDITO TADEU CÉSAR, doutor em Ciências Sociais e ex-orientando de doutorado de Chico de Oliveira
Chico de Oliveira se foi. Perdeu o Brasil. Perdemos todos nós.
Morreu um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos.
Francisco Maria Cavalcante de Oliveira, Chico de Oliveira ou simplesmente Chico, nascido no Recife em 1933, o sociólogo que nos ensinou a enxergar e analisar a complexidade dinâmica da sociedade brasileira e dos embates sociais e políticos que a movem, deixou um legado de sabedoria e de afeto por onde passou.
Detentor de um raciocínio crítico arguto e sofisticado, Chico foi um homem de pensamento e de ação. Discípulo e admirador de Celso Furtado, com quem trabalhou na SUDENE, Chico nunca se deixou levar pelas simplificações teóricas. Marxista de formação, utilizando o método com maestria e sem dogmatismo, deixou uma extensa obra, que inovou e revolucionou a interpretação sociológica e econômica do Brasil.
Com o seu livro “Crítica à Razão Dualista”, publicado pela primeira vez em 1972 e que se tornou um marco da interpretação da sociedade brasileira, Chico de Oliveira desvendou a relação existente entre o Brasil moderno, urbano e industrial, e o Brasil então chamado de atrasado, tratados até ali como se fossem barcos navegando lado a lado nas mesmas águas. Por meio de uma análise criteriosa e inovadora, Chico demonstrou que o Brasil moderno se desenvolvia às custas do atrasado, dele se alimentando e reproduzindo-o constantemente.
Na mesma linha de pensamento, Chico construiu seu livro “O Ornitorrinco”, publicado em 2003, no qual atualizou a reflexão e a análise anterior da sociedade brasileira, caracterizando-a, em um novo momento, como um ser estranho que continua se engendrando através da articulação do que há de mais atrasado e com o que há de mais contemporâneo em seu próprio meio.
A reflexão de Chico de Oliveira não se restringiu à realidade brasileira. Longe das posições teóricas que segmentam a sociedade em áreas e tentam entendê-las separadas das demais, Chico buscou sempre relacionar os aspectos econômicos, sociais e políticos, em busca da compreensão do processo histórico em sua globalidade. E, na mesma lógica, teve clareza da articulação existente entre os processos em curso nas diferentes regiões do planeta.
Para apreender a lógica mais geral de reprodução do sistema capitalista, hegemônico em termos internacionais, Chico realizou estudos que levaram à produção do texto “O surgimento do antivalor”. Nele, identificou as mudanças na forma de reprodução do sistema capitalista, na segunda metade do século XX, denominada por ele de sociabilidade social-democrata, na qual o espaço da representação política se transformou em uma arena de disputa pela repartição da riqueza social, através da luta pela destinação dos fundos públicos, tornando a democracia política em um valor fundamental para os trabalhadores.
Num mundo em transformação, em que a sociedade de bem-estar social e a sociabilidade social-democrata estão sendo fortemente atacadas, e num país como o Brasil, que caminha a passos céleres na retomada do modelo econômico e social dependente e primário exportador, a obra de Chico se mantém como um legado fundamental para a compreensão dos retrocessos em curso e para a formulação dos caminhos capazes de superá-los.
Chico de Oliveira foi meu professor e orientador de doutorado.
Passei longo tempo o admirando de longe, devorando seus textos, até que consegui me licenciar da UFES, em Vitória, no ES, para fazer doutorado em São Paulo. Fui para a Unicamp, porque Chico estava se transferindo para lá. Quando cheguei, constatei que ele tinha ido para a USP. Fui atrás dele. Me matriculei no doutorado em Ciências Sociais na Unicamp, mas me matriculei também na cadeira de sociologia que Chico ofereceu na pós-graduação da USP.
Na primeira aula, todo tímido, vi e ouvi meu ídolo intelectual e vi também que os alunos o chamavam simplesmente de Chico, coisa que só consegui fazer depois de algumas semanas de aulas. Um dia, ao final da sua aula, enchi-me de coragem e propus a ele ser meu orientador e, depois de uma conversa e da discussão de um antiprojeto de trabalho, ele me aceitou. Foi a glória.
Nos tornamos amigos. Além de ser um intelectual instigante e que revolucionou a interpretação da dinâmica de desenvolvimento da sociedade brasileira e a reflexão sobre os fundamentos da sociabilidade social democrática, Chico era uma grande figura humana, que irradiava conhecimento e afeto. Ele tinha um irmão com o mesmo nome meu e, por isso, me chamava de Tedy, que é o apelido familiar de seu irmão.
Uma enorme perda para o Brasil e para todos nós.