“Desde as eleições de 2014, os brasileiros foram tomados pelo ódio. Continua isso assim? Eu acho que não. Desde que o Lula foi liberado e apareceu como o grande líder que deverá ganhar as eleições no final deste ano, a sociedade brasileira se pacificou um pouco. Não totalmente. A direita liberal continua procurando uma terceira via, uma coisa ridícula. Mas, enfim, deixa eles. O fato concreto é que hoje o Lula, que é um grande líder político, está encarnando, de uma maneira muito curiosa e significativa, essa saída do Brasil desse lamaçal neoliberal, dessa corrupção neoliberal”.

É o que avalia Luiz Carlos Bresser-Pereira em entrevista ao TUTAMÉIA. Ministro nos governos Sarney e Fernando Henrique Cardoso, ele afirma que “a burguesia não tem projeto nenhum” e que a eleição de Lula “vai acontecer sem a participação dos empresários, que estão sem voz”.

Para Bresser, “o ideal é que o Brasil caminhe para um pacto nacional, desenvolvimentista e democrático”. Na sua visão, o novo governo precisa “ao mesmo tempo revelar a sua autonomia e ter um projeto que ele defenda com firmeza e, de outro lado, se mostrar aberto à negociação. Você tem que fazer acordos. Mas acordos em que você se submete não adianta nada, e o Lula não vai se submeter”.

Nesta entrevista, o economista define como criminosas as privatizações de empresas monopolistas, critica a venda da Vale, que classifica como irresponsável, e condena o encolhimento para um terço do tamanho do BNDES. “O que aconteceu com o BNDES é criminoso. Essa gente deveria ir realmente para a cadeia por crime”, declara.

“Nós entramos numa crise em 2014 e não saímos mais dela. Estamos nela até hoje. Crise econômica e política. Esses neoliberais que defendem o Bolsonaro ao mesmo tempo não querem investir. Por que quem vai investir num país como este? Com uma situação tão instável como está em que nós vivemos”, afirma.

Criador da teoria do novo desenvolvimentismo, Bresser, aos 87 anos, defende o nacionalismo econômico, o papel do Estado, o investimento público e a reindustrialização do país. Traça propostas para um novo governo, ressalta a importância do imperialismo no mundo e observa mudanças no pensamento mundial:

“O neoliberalismo lá fora morreu e o enterro dele aconteceu neste ano. Primeiro com o governo do Biden. Evidentemente o Estado está de volta nos Estados Unidos, mas também na Europa. A ‘Economist’ está de luto” (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

ÓDIO, GOLPE NEOLIBERALISMO E ESTAGNAÇÃO

Em 2015, Bresser-Pereira identificou a ascensão no ódio na sociedade brasileira. Seis anos depois, ele analisa:

“Desde as eleições de 2014, os brasileiros foram tomados pelo ódio. O ódio é uma paixão absolutamente incompatível com a política e, portanto, com a democracia. O resultado do ódio é sempre muito ruim. São guerras, são genocídios. No nosso caso, o resultado foi o impeachment da presidente Dilma, um golpe de Estado, e depois dois governos absolutamente desastrosos para o Brasil.

“Desde 2014 o Brasil é uma sociedade rigorosamente estagnada. Há quase 40 anos ela está semiestagnada, tem crescido muito pouco. Desde que o Brasil foi tomado pelo ódio, esse ódio se traduziu numa hegemonia absurda do neoliberalismo. Uma ideologia que foi criada e se tornou dominante nos EUA e na Inglaterra nos anos 1980 e que já estava em crise em 2007-2008, quando houve a grande crise financeira global. Ali ficou claríssimo que esse tipo de forma de coordenação econômica é absolutamente ineficiente além de injusta e violenta.

“O Brasil vinha com o neoliberalismo desde o governo Collor. Mas um neoliberalismo morno, não tão violento. De repente, quando o neoliberalismo estava sendo abandonado lá no Norte –agora foi, completamente. Neste último ano, o neoliberalismo entrou em colapso definitivamente. Nós, não. Nós resolvemos ouvir os economistas liberais que diziam como o Brasil estava caminhando para um déficit público imenso –o que era falso. Foi um grande equívoco, e o resultado é esse que temos aí.”

“O liberalismo econômico é uma forma ineficiente de organizar economicamente uma sociedade. O desenvolvimentismo [defende] uma intervenção moderada do Estado na economia e uma perspectiva nacionalista econômica.”

“A ideia é de que nós vivemos num mundo global em que as nações, os estados nacionais competem entre si. E há países imperialistas entre os mais poderosos, de forma que é preciso que cada um cuide da sua própria vida e tenha o seu próprio projeto de desenvolvimento. Isso é extremamente importante, e nós fizemos exatamente o oposto”.

Bresser observa o cenário do que ele classifica como “corrupção neoliberal”:

“O que nós vimos na Câmara dos Deputados é uma captura do patrimônio público por parte de deputados, absolutamente inaceitável. Corrupção mesmo. Mas que é feita de maneira legal através de emendas no orçamento. Vivemos nessa loucura. Isso evidentemente vai acabar, e então o Brasil precisa pensar como ele vai sair”.

Ele acrescenta:

“Não se pode ao mesmo tempo transformar o Lula num salvador. Ele é um homem como todos nós, com problemas e dificuldades. Ele vai precisar de ajuda, ele vai precisar pensar bastante –e ele tem pensado. A prisão para ele foi uma coisa muito importante e muito educadora para ele. Então, vamos esperar que, afinal, os brasileiros comecem a se reencontrar”.

PACTOS, PROJETOS E IMPERIALISMO

Em seus livros, Bresser aponta a sucessão de pactos da história brasileira: o nacional-popular, de Getúlio Vargas; o autoritário, modernizador e concentrador de renda, da ditadura; o democrático-popular, da transição para a democracia; o liberal-dependente, de Collor e FHC, e o nacional-popular de Lula.

Defendendo agora a volta de um pacto nacional, desenvolvimentista e democrático, o ex-ministro comenta o papel dos empresários e o desafio do desenvolvimento:

“Os empresários são necessários nessa sociedade. Por enquanto, os empresários estão fechados. Alguns deles, muito representativos, têm mostrado a sua insatisfação e querem encontrar uma solução econômica melhor. Mas acho que eles não têm. Pouca gente tem. O problema do Brasil não é sair dessa crise em que estamos. Isso é o mais importante e imediato. Nós temos que, em seguida, retomar o desenvolvimento econômico, uma coisa que nós perdemos em 1980.”

“Primeiro, com uma grande crise da dívida externa, mais uma alta inflação. Isso levou 14 anos. Quando as duas crises foram resolvidas, no começo dos anos 1990, e se esperava que o Brasil fosse ter um grande crescimento, foi a decepção econômica do governo Fernando Henrique Cardoso, do qual eu participei e que me deixou realmente muito surpreso e decepcionado. Porque ali Fernando Henrique Cardoso estava aceitando as ideias neoliberais, sem nenhum nacionalismo. Para uma nação, o nacionalismo é absolutamente fundamental.”

“Qual foi o resultado do liberalismo econômico, de nós termos nos submetido a esses países lá do Norte? Paramos de nos desenvolver. Entramos num regime de quase estagnação. O crescimento do Brasil, nos últimos 40 anos, foi a uma taxa de 0,7% ao ano, quase nada. Nos países ricos foi o dobro. E nos demais países em desenvolvimento, quatro vezes mais. Então o imperialismo, sim, existe”.

Segue Bresser:

“Lula fez o maior esforço possível para conseguir um acordo e avançou. Lembro que, em 2011, no começo do governo Dilma, a Fiesp estava organizando uma grande conferência, um grande entendimento com todas as centrais sindicais. Houve um grande evento na Mooca. Nós estávamos caminhando nessa direção. De repente, paramos. Precisamos retomar esses acordos, e o Lula sabe disso. Ele fará novamente um esforço grande. Ao mesmo tempo, percebe que não adianta fazer um acordo sem ter um projeto. A burguesia não tem projeto nenhum. Os economistas deles são liberais que são um horror. Não sabem o que fazer do Brasil.”

“Então, a eleição do Lula vai acontecer sem a participação dos empresários. Existe uma coisa chamada hegemonia ideológica. Geralmente os empresários, a classe capitalista tem a hegemonia ideológica, porque eles dominam a grande imprensa eles têm ‘think tanks’ que eles financiam abundantemente. Aqui não está adiantando isso. Eles estão sem voz. Porque é preciso ter uma narrativa, como se diz hoje, uma alternativa de explicação do que está acontecendo e como a gente sai disso –e eles não têm nada.”

“Vamos ter as eleições. Claro que o ideal é a participação de parte dos empresários. Mas o mais importante é que, quando começar o governo, o governo precisa ao mesmo tempo revelar a sua autonomia e ter um projeto que ele defenda com firmeza e, de outro lado, que ele se mostre aberto à negociação. Isso eu aprendi quando tinha 8 ou 9 anos e eu tive a minha primeira aula de política. Eu perguntei para o meu pai: ‘O que é política’. E ele me respondeu imediatamente: ‘A política é a arte do compromisso, dos acordos’. Ele estava pensando no Getúlio naquela época, 1941, 1942. Você tem que fazer acordos. Mas acordo em que você se submete não adianta nada, e o Lula não vai se submeter”.

PRIVATIZAÇÕES CRIMINOSAS, INVESTIMENTO PÚBLICO, REINDUSTRIALIZAÇÃO

Fala Bresser:

“É preciso dar uma ênfase muito grande ao investimento público. O problema da infraestrutura no Brasil é muito sério, e ficamos sempre esperando resolver o problema por meio de privatizações. Isso é um absurdo. Quando há uma privatização, como tem havido algumas, geralmente são privatizações de investimentos que nós já fizemos, estrada, hidrelétricas. Eu entendo que é criminoso do ponto de vista econômico fazer isso. Criminoso porque essas empresas são praticamente monopolistas. De forma que o mercado não as controla. O que acontece quando privatiza? Eles fazem um compromisso de investimento, que eles não realizam, e aumentam o preço assim que der. Tem muitos países que estão repensando o problema dessas privatizações. Quando é de empresa competitiva, eu sou a favor. A não ser que seja empresa de mineração, como Petrobras ou Vale, que nos privatizamos de maneira rigorosamente irresponsável. Essa política tem que ser novamente debatida e mudada”.

Tratando de desenvolvimento e reindustrialização, ele enfatiza:

“O que aconteceu com o BNDES é criminoso Essa gente deveria ir realmente para a cadeia por crime. Nesses anos, o BNDES foi dividido por três. Ele é um terço do que era antes da crise. É criminoso isso. Se o Brasil voltar a ter uma política desenvolvimentista, o BNDES vai ter um papel novamente importante, e, então, nós vamos ter desenvolvimento”.

E mais:

“A reindustrialização tem que ser feita. A política de desenvolvimento volta a ser necessariamente uma política de reindustrialização. Ou seja, de sofisticação produtiva. A indústria tem o valor adicionado mais alto porque é mais sofisticada produtivamente e porque paga salários mais altos. Desenvolvimento econômico é salário mais alto e é também aumento da renda per capita O Brasil precisa voltar a se reindustrializar e pode fazer isso, sim. Temos experiência já, no passado”.