“Até quando eles vão caminhar sem perceber o imenso desgaste que está acontecendo com a imagem das Forças Armadas? Eles podem ir muito longe, porque as Forças Armadas no Brasil são uma bolha, uma espécie de Estado dentro do Estado, vivem de imagens que elas próprias criam. Podem viver num estado de negação ou de ilusão. Caso não estejam vivendo nesse estado de ilusão, os militares próximos ao presidente estão vivendo um estado de ilusão. É inimaginável o desgaste que as Forças Armadas estão vivendo hoje. Bolsonaro é um chefe fascista, com um projeto de desconstrução, destruição. Ele destrói tudo em que põe a mão, até a popularidade das Forças Armadas. É como um governo de ocupação, que destrói a democracia por dentro. Quando estamos olhando para um lado, ele vai destruir o outro. Parece um ataque de gafanhotos.”

É o que afirma ao TUTAMÉIA João Roberto Martins Filho, professor titular da Universidade Federal de São Carlos. Autor de “O Palácio e a Caserna” (Edufscar, 1995), ele está lançando “Os Militares e a Crise Brasileira (Alameda), obra que reúne artigos de especialistas no tema.

Para o cientista social, “com o fracasso do governo Bolsonaro, as Forças Armadas vão cair no purgatório, vão ter que agir sem o patrimônio que tinham de confiabilidade”. Na sua visão, será preciso refundar as Forças Armadas no Brasil. “Quando o Brasil voltar a ser um país democrático, sabe-se lá quando, as Forças Armadas terão que ser reformadas. Por mais que isso arrepie, se as coisas continuarem do jeito que estão, eles mesmos é que estão cavando o seu próprio túmulo”.

E continua:

“Se essa instituição não for mudada, a democracia brasileira nunca vai ser plena. Enquanto houver um Estado dentro do Estado, nós podemos até fechar os olhos, mas vai haver um obstáculo à democracia. Eles fizeram tudo o que fizeram agora. O que vai impedi-los de fazer tudo de novo no futuro seja quem for o governo? Não acho que exista uma cultura democrática nas Forças Armadas brasileiras e nem acho que exista uma cultura profissional como nas forças armadas nos Estados Unidos. As Forças Armadas brasileiras, principalmente o Exército, continuam achando que numa crise quem vai intervir são eles, por isso falam em poder moderador”.

Nesta entrevista, Martins Filho fala da ação coordenada das Forças Armadas para a volta ao poder, das origens desse movimento, da interferência externa nesse processo e descreve o crescente desgaste dos militares na sustentação do governo Bolsonaro, numa “situação protofascista. Temos uma interferência militar que não acontece em democracias e um presidente que tenta, de toda a maneira, romper os limites da democracia. Se os poderes da República titubearem, ele avança sobre esses poderes”. Acompanhe a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV.

Avalia o sociólogo:

“É inimaginável que alguém iria se expor tanto ao desprestígio público”, diz. Ele lista os casos, começando com o “vexame da demissão do general Santos Cruz”, passando pela reforma da Previdência, quando “todo mundo viu que as Forças Armadas só pensam em si; transformaram a reforma em reestruturação da carreira”.

Agora, enfatiza, “há uma hecatombe que tomou o Brasil, que é o desastre sanitário da covid. Há um general na ativa comandando esse desastre! Ele desestruturou um dos ministérios mais prestigiados, que estaria plenamente qualificado para reduzir as mortes em 40%”.

Também lembra do caso das “licitações aparentemente escandalosas”, que remetem a escândalos de superfaturamento e compras não justificadas que surgem também em meios civis.

“Que o Exército explique porque tanto camarão, picanha e leite condensado. Ele está se enrolando para explicar. A ideia central que sustenta a arrogância militar no Brasil é que os militares são melhores do que os civis em todos os aspectos. Mas os militares não só não são superiores aos civis do ponto de visa moral, como eles sempre colocam, como estão francamente incapacitados para fazer até aquilo que a gente achava que eles sabiam fazer, que é organizar a logística”, declara.

AÇÃO ORGÂNICA, CENTRALIZADA E COORDENADA

Martins Filho fala do papel central que Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, teve em todo o processo que levou Bolsonaro e militares ao poder:

“Villas Bôas passou a falar depois do afastamento da Dilma, nos distraindo, dizendo que não haveria uma intervenção militar, que não haveria um golpe de Estado. Cada vez que ele falava isso, a gente sentia um certo alívio. Não haveria mesmo. A estratégia deles, que estava cada vez mais definida com o início do governo Temer, foi reocupar os espaços, principalmente com a recriação do Gabinete de Segurança Institucional, que tinha sido extinto pela presidente Dilma. Com o início do governo Temer, o general Sérgio Etchegoyen, que é um dos cérebros dessa operação –o outro é o general Villas Bôas–, reconstrói a presença militar no setor de inteligência”.

Citando o recente livro com o depoimento de Villas Bôas sobre o tuíte de pressão sobre o STF no caso Lula segue o cientista social:

“Todos eles estavam agindo de forma orgânica, centralizada e coordenada. Parecia para a sociedade, mesmo para os especialistas, que havia ali um setor mais radical e que Villas Bôas representava o setor mais moderado, racional, que ele não iria dar um golpe. Não precisava dar golpe. A ideia seria voltar ao centro do poder político com um candidato civil consagrado pelas urnas. Eles vêm em Bolsonaro a grande chance. Os militares tinham uma estratégia, que era a de volta ao poder. Não estava muito claro como isso se daria. Eles tinham inclusive uma doutrina, que é a da guerra híbrida. Não se sabia se Bolsonaro ganharia ou não. Não se sabe o que aconteceria se Bolsonaro não tivesse ganho as eleições”.

E continua:

“Uma vez que ele ganhou, o projeto deles estava realizado. Eles voltaram ao poder. Mas não voltaram ao poder controlando Bolsonaro. Sem o apoio dos militares, Bolsonaro não sobreviveria. Mas a dinâmica política do governo Bolsonaro é dada pelas ações do presidente da República. O presidente da República é um homem incontrolável. Os militares estão aos milhares no poder, ocupando quase um terço do ministério e ocupando o núcleo político decisório com os generais que ficam no Palácio do Planalto. Quem dá o tom do governo é o presidente. O presidente não pode sobrevier sem os militares, mas os militares não controlam totalmente o presidente. Eles podem cair fora na última hora. Mas eles têm principalmente um projeto. Um projeto é apoiar o Bolsonaro que venceria as eleições de 22. O projeto é ficar com o Bolsonaro”.

TROICA DE AVANÇO SOBRE O PODER

Na análise de Martins Filho, “o general Santos Cruz formou a troica que elegeu Bolsonaro; ele foi o cérebro por trás da eleição do Bolsonaro, junto com Etchegoyen e Villas Boas”. Ao descrever a trajetória ascendente dos militares, o professor defende que foi um erro ter permitido, por exemplo, que as Forças Armadas controlassem a inteligência dos grandes eventos, como Copa e Olimpíadas. Da mesma forma, critica a ida ao Haiti:

“Eu achei que era bom eles irem para o Haiti. Mas, em pouco tempo, eles estavam usando a experiência do Haiti como exemplo de que eles saberiam dar conta da criminalidade no Rio de Janeiro. A experiência do Haiti foi uma experiencia fundadora. Ela ajudou muito os generais, apesar dos percalços. Ela funcionou como funcionou a ESG nos anos 50. Os militares foram pouco a pouco adquirindo autoconfiança de que eles tinham condições de voltar ao centro da política. Haiti, autoridade olímpica e Comissão Nacional da Verdade, juntos, vão dar o caminho que os levou de volta ao poder”.

Esse movimento não foi identificado mesmo por quem acompanha o setor com lupa. Diz o sociólogo:

“A comunidade dos estudiosos de defesa é pequena. Tem 20, 30 professores sêniores. Nós não percebemos o que estava acontecendo, essa ideia de que os militares queriam voltar ao poder. Eles romperam com toda a comunidade dos estudos de defesa. Os militares de hoje têm uma linha direta de continuidade com os militares dos anos 1970, coisa que a gente achou que não aconteceria. Achamos que tinha havido mudanças significativas, que o autoritarismo estava nas margens. Do mesmo modo com que eles romperam conosco, que conhecemos bem eles, eles romperam com os jornalistas, com a universidade, com a ciência. É evidente que o que os espera no fim da linha é uma tremenda desconfiança com relação à suas intenções daqui para a frente. Se eles enganaram a sociedade como enganaram porque não vão enganar de novo? Qual a condição que temos hoje de apostar com um diálogo com os militares? A gente apostou na democratização da política de defesa nas Forças Armadas, nas relações entre civis e militares –e nós erramos. Com esses militares de hoje não vai haver diálogo”.