Mais do que criticar a atuação da mídia corporativa, que produz noticiário enviesado e campanhas abertas contra personagens de um só lado do espectro político, o campo progressista e de esquerda precisa fazer autocrítica por ter sido incapaz de construir veículos de comunicação para expor o debate na sociedade.

É a reflexão que faz Eleonora de Lucena, copresidente do TUTAMÉIA, em sua participação no painel “Imprensa, a Hora da Autocrítica?”, realizado nesta terça-feira, 28.5, no 5º Salão do Livro Política. Do debate, mediado pelo professor Fábio Cypriano, também participaram as jornalistas Carla Jimenez, do “El País”, e Natália Viana, da Agência Pública (à dir. na foto abaixo).

Acompanhe a seguir o texto apresentado por Eleonora de Lucena (acompanhe a participação dela no vídeo do alto desta página).

 Imprensa, a hora da autocrítica?

Sim e não.

A resposta depende da fração da mídia, do momento, da perspectiva histórica.

Vamos falar primeiro da mídia corporativa, que vive um turbilhão de mudanças, especialmente na última década. As transformações ocorrem em duas dimensões: a do modelo de negócios e a do posicionamento político.

Sobre o modelo de negócios. As mídias sociais abocanharam leitores, ouvintes, telespectadores, internautas. Abocanharam a publicidade, encolhendo faturamentos e orçamentos. O modelo de negócios tradicional ruiu e não há nada no lugar que possa reavivar os tempos áureos da imprensa, quando os poderosos de plantão se curvavam ao que padronizou classificar como o quarto poder.

Hoje os poderosos não precisam convocar entrevistas coletivas; soltam um tuíte. Aturdidas com a avalanche dos últimos anos, as redações encolhem, produzem menos informação de qualidade e de maneira crítica.

Cabe aí uma autocrítica: a soberba, muitas vezes centenária, talvez tenha impedido a criação de modelos alternativos mais agressivos para enfrentar os novos tempos. Poderiam ter feito algo? Pode ser.

O neoliberalismo aplicado ao negócio mídia produziu terra arrasada nas empresas, que sucumbem à lógica financeira. Assim, o tradicional muro entre redações e publicidade parece fragilizado –me disse esses dias um veterano jornalista que trabalhou nas maiores redações do país.

Sobre o posicionamento político. Millôr Fernandes disse: “Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”. Sim, é verdade. Jornalismo é crítico na essência. Mas o que aconteceu no país a partir de 2010 foi que boa parte da imprensa adotou um lado. Simples assim. Deixou de ser crítica na essência, esmagou a pluralidade e adotou uma só linha, sem contrapontos, sem diversidade de opinião, sem se preocupar com os diversos lados.

Em 2010, quando se encerrava o governo Lula e estava ficando claro que a esquerda permaneceria no poder, a presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais) disse: “Os meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista, já que a oposição está profundamente fragilizada”. Era a declaração de guerra. Um posicionamento claro, uma tomada de lado.

O que se viu foi a ascensão do noticiário enviesado, das campanhas abertas contra personagens de um só lado do espectro político, uma enxurrada de publicações acríticas do que saía de parcelas aparelhadas do Ministério Público.

A imprensa tomou partido. A fúria da imprensa contra o PT e a esquerda se desenrolou tendo como pano de fundo a reestruturação do capitalismo na esfera mundial. Não é possível dissociar a mídia do terremoto que abala o sistema há quase dez anos.

Corroído pela desigualdade e pela falta de perspectiva de avanço para as grandes maiorias das populações dos países centrais, o capitalismo financeiro busca extrair mais ganhos, especialmente nas periferias. E a mídia mais do que ecoa esse movimento _serve de instrumento crucial para as mudanças políticas e econômicas.

As mudanças na mídia local foram acontecendo: primeiro, eliminado o contraditório, a posição divergente, o debate. Depois, adotando um tom mais desabrido, forte, ofensivo contra as posições de esquerda. Estridente contra esquerda e bloqueando a diversidade política, a mídia foi vetor da crise política.

Aí não cabe autocrítica. Foi extremamente exitosa na tarefa que se propôs –conforme verbalizou a presidente da ANJ. Derrubou o governo e contribuiu para colocar a extrema direita no poder –vale tudo para implementar o neoliberalismo subserviente.

Se a autocrítica não cabe nesse resultado de curto prazo, no longo prazo da história a conversa é outra. Anos atrás, quando a Comissão Nacional da Verdade expôs os crimes da ditadura e o terrorismo de estado que vigorou naquele tempo, pingaram editoriais de autocrítica muito tardia, 50 anos depois. Inócuos, uma operação de marketing. É constrangedor observar as colunas que mostram como eram os jornais daqueles tempos –tanto que elas estão sendo jogadas para o fundo das páginas. Consultem os arquivos para ver como era a imprensa durante a ditadura. Sim, havia a censura –mas ela não explica tudo.

A guinada à direita da mídia e sua adesão às teses da extrema direita faz com que ela perca relevância, leitores, apoios. Hoje, numa situação vexaminosa, é atacada pela própria extrema direita que ajudou a construir.

Nesse processo, deixou de lado justamente o seu espírito crítico, sua pluralidade para mergulhar com tudo nesse abismo do obscurantismo. Aqui, no tempo histórico, haverá muita autocrítica a fazer. Só não se sabe se os atores de hoje estarão vivos daqui a 50 anos.

Mas a maior autocrítica não deve ser feita pela mídia corporativa, a chamada grande imprensa. A maior autocrítica deve ser feita no campo progressista e de esquerda, incapaz de construir veículos de comunicação para expor o debate na sociedade.

Muitos na esquerda se deslumbraram com o espaço que pareciam ter nos grandes veículos e acariciaram os oligopólios do setor, alimentando seus inimigos. Muitos ainda confundem informação com publicidade, “lives” com votos, debate com propaganda.

Quando veio o golpe, viram que estavam no meio da selva de fake news, trapaças, mentiras. Era isso mesmo: mídia sempre foi e continuará sendo um instrumento de guerra, de disputa ideológica. Que a direita soube muito bem usar e ainda usa.

Não para fazer chorumelas, mas para enfrentar e encurralar as ideias de esquerda, as ideias progressistas. A direita soube pautar o debate, fazer a disputa ideológica. Não se perdeu em questões parciais, segmentadas, de interesse localizado.

A esquerda, não. Acuada numa miscelânea de sites, a esquerda abdica de colocar de forma mais ampla a sua visão de sociedade, a sua análise da política, da cultura, da economia, do comportamento. Ficou acostumada em terceirizar para os “especialistas, os publicitários” a sua mensagem –aquelas das propagandas plastificadas das campanhas eleitorais.

As esquerdas, em boa medida, fugiram do debate. Preferiram ficar em suas bolhas, enquanto a direita avançava com seu ataque em várias frentes: jornais tradicionais, tvs edulcoradas, programas policiais abjetos, grupos de whatsapp perversos, confissões religiosas de origens duvidosas –quando não apenas o esparramar de terror e de medo.

É sabido que o neoliberalismo avança pela fragmentação, pela perda de identidade dos grupos sociais, pelo rompimento dos laços de solidariedade social. Assim, fragmentados, iludidos, deslumbrados, boa parte dos grupos de esquerda não soube enfrentar o que veio pela frente.

Não entendeu a guerra em curso. Não construiu sua mídia –o instrumento crucial em qualquer disputa de poder.

E não adianta chorar pela parcialidade da mídia. A mídia hegemônica –instrumento do grande capital e dos interesses externos– fez exatamente o que se propôs a fazer –e venceu, pelo menos por agora.

A chamada mídia alternativa fez muito, mas não fez tudo o que deveria ter feito. Os grupos de esquerda e progressistas, que ignoraram e subestimaram o papel da mídia, é que não souberam apontar caminhos. É deles a hora da autocrítica.