“As cidades importam. As cidades são fundamentais para a reconquista da democracia brasileira.” É o alerta e o chamamento que faz a arquiteta e urbanista Erminia Maricato num momento em que, conforme sua avaliação, vivemos “uma verdadeira fratura institucional nas nossas cidades”.

Em entrevista ao TUTAMÉIA às vésperas da abertura do terceiro Fórum Nacional BrCidades, que propõe “rediscutir a agenda urbana nacional frente aos desafios dados pela crise sanitária e urbana”, ela traça o seguinte quadro:

“A especulação imobiliária, a irracionalidade de uso e de ocupação do solo, a irracionalidade da produção das nossas cidades é bárbara. É bárbaro o que está acontecendo. Temos esse aprofundamento da pobreza numa pandemia sem Estado, uma ampliação do crime organizado e das milícias, com as religiões pentecostais, e ao mesmo tempo, o negócio –as cidades como o grande negócio da atualidade, com pouca visibilidade.”

Uma das maiores especialistas em urbanismo do país, secretária-executiva do Ministério das Cidades no governo Lula, ela fala sobre os impactos da pandemia na vida urbana, a especulação imobiliária e a luta por uma nova cidade (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Antes, comenta a situação política do país: “É muito impressionante uma conjuntura em que se consegue enganar as pessoas tão facilmente nas redes sociais. Fico muito impressionada com isso e também com a pouca confiança no que é fato, no que é ciência. Precisamos entender que a regressão que estamos vivendo atualmente trouxe o nosso passado de volta. Não é uma questão apenas nacional, é um problema estrutural, global; há uma mudança na geopolítica mundial. Mas, no Brasil, dentro desse contexto mundial, o que nós vivemos é uma regressão que nos traz de volta heranças coloniais e escravistas. E nós precisamos enfrentar”.

FRATURA INSTITUCIONAL

A pandemia agravou os problemas já existentes, analisa Maricato, professora aposentada da USP: “Na pandemia, a desigualdade, que é estrutural, se aprofundou. Com a pandemia entramos num abismo. Parte de nossas cidades foi construída sem estado e sem mercado. Eu me refiro a esse mercado capitalista imobiliário, porque há lá um mercado informal, em que as milícias estão cada vez mais tomando conta. Mas na verdade não há Estado nas periferias brasileiras. O estado entra, por meio da polícia, que é muito violenta, entra com o clientelismo, a troca de favores.”

Ela segue: “Não há possibilidade de grande parte da população fazer isolamento social. Parte da população não tem dinheiro para comprar máscara que funcione. Parte da população não tem dinheiro para trocar a máscara. Parte da população está sem comer, não tem dinheiro para por comida na mesa. Eles têm de sair de casa para se manter”.

Lembra estatísticas que mostram como é maior o número de mortes por covid nas periferias: “O mapa das mortes de São Paulo tem tudo a ver com renda, escolaridade, moradia, saneamento, e atinge, do ponto de vista da força de trabalho, especialmente quem está na informalidade ou desempregado. E isso chega a quase cinquenta por cento da força de trabalho no Brasil. A pandemia aprofundou uma realidade que já existia e que não era tão percebida”.

Não é por acaso que isso acontece, aponta a urbanista: “Se a gente olhar os mapas, vamos perceber uma lógica que atravessa renda, escolaridade, emprego formal ou informal, vacinação, contaminação e mortes. Isso tem uma lógica. Tudo tem a ver também com o preço do metro quadrado do imóvel, tudo isso está ligado à lógica do mercado imobiliário. Nós temos uma verdadeira fratura institucional nas nossas cidades”.

ESPECULAÇÃO E VERTICALIZAÇÃO

As cidades estão sob ataque: “O mercado imobiliário está numa ofensiva. Sem dúvida nenhuma, esse boom imobiliário que nós estamos vivendo tem a ver com a questão econômica nacional e internacional. É espetacular, notável para qualquer não especialista, essa verticalização, essa derrubada de casas e verticalização de bairros que apresentam boas condições urbanas. Estamos vendo uma verdadeira destruição de qualidade de vida. Aqui na Vila Madalena nós temos edifícios de mais de quarenta andares em topo de morro! Isso significa condenar ao sombreamento, à falta de insolação durante as manhãs frias de inverno, de quadras inteiras, que ficam atrás desses verdadeiros paredões”.

O movimento especulativo busca apoio legal, destaca a urbanista: “Está havendo uma ofensiva do mercado imobiliário para flexibilizar os planos diretores, para flexibilizar a legislação do uso e ocupação do solo, pretendendo aumentar o índice de ocupação dos terrenos, diminuir a outorga onerosa -que é o quanto mercado imobiliário paga para construir além do que está definido como base pelo plano diretor.”

Segundo ela, “a opinião pública da cidade está pouco informada sobre isso, sobre o fato de que existe um lobby que dirige o investimento público, e esse investimento, em vez de se dirigir para os bairros que mais precisam, ele vai seguindo sob a orientação que o mercado imobiliário aponta. É um investimento não onde é necessário. São obras sem planos e planos sem obras”.

Mas há oposição, destaca Maricato: “Existe muita resistência no Brasil todo. Estamos vivendo essa queda de braço no Brasil todo. Em São Paulo foi organizada uma Frente em Defesa da Vida, que reúne quatrocentas entidades, que está numa queda de braço com a Prefeitura, com a Câmara Municipal para barrar as mudanças no plano diretor, mas parece que o prefeito vai tentando fazer modificações mais fragmentadas, fora de uma legislação mais holística”.

UM PROJETO PARA AS CIDADES

Essa resistência, que Maricato aponta existir não só em São Paulo, mas espalhada por todo o Brasil, em uma miríade de iniciativas, é um dos fatores para que a urbanista diga: “Não sou pessimista. Acho que nós vamos atravessar esse momento, fazer uma regulação dessas cadeias de informação falsas. Em 2016 houve um destamponamento de muita coisa que estava no armário, com as quais nós precisamos lidar. Penso que precisamos nos preparar para uma mudança de médio e longo prazo, além, evidentemente, de dar respostas para o curto prazo.”

Ela segue: “Eu acredito muito na participação, no poder local, eu acredito demais na democracia direta. Há hoje uma multiplicação de movimentos de solidariedade. A Campanha Despejo Zero tem um ano e pouquinho de vida, e ela está conseguindo –não conseguiu segurar os mais de dez mil despejos que tivemos durante a pandemia, mas está segurando mais de noventa mil tentativas de despejo. Chegamos ao Congresso Nacional, que aprovou uma lei, que foi barrada pelo presidente Bolsonaro. Mas muitos juízes estão considerando uma decisão do Tribunal Superior de Justiça de evitar despejos coletivos durante a pandemia.”

Cita ainda outras iniciativas e propõe caminhos: “Veja todo o movimento das cozinhas coletivas. Eu nunca vi o movimento antirracista ter tanta energia, potencial, incidência como está tendo hoje no Brasil. Nos meus cinquenta anos de militância pelo chão das cidades, eu nunca vi. É tão clara a ideia hoje de que ou a reconquista da democracia brasileira vai ser antirracista ou ela não vai existir. Pensem numa cidade antirracista! Pensem numa cidade onde as mulheres tenham a mesma liberdade, os mesmos direitos dos homens. Pensem numa cidade em que a juventude pobre e periférica possa desenvolver sua potencialidade em artes, na cultura, no esporte”.

E convida: “Comece a pensar o que sua cidade poderia ser –um projeto para as cidades do Brasil. Vamos pensar o que poderia ser uma cidade democrática, participativa, com mulheres muito atuantes, com negros e negras e jovens na condução dos trabalhos, nas coordenações. Vamos lá. Tamo junto”.

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