“A pena privativa de liberdade, assim como é cumprida aqui no Brasil, ela extrapola o sofrimento de qualquer condenado. De acordo com o Departamento Nacional de Políticas Penitenciárias, levantamento feito em junho de 2019, tínhamos 758.676 pessoas presas em estabelecimentos carcerários –o Brasil é o terceiro país com maior população carcerária no mundo. Mais de 45% estão em estabelecimentos de regime fechado. E há também os presos provisórios, que ainda não estão condenados –são pessoas que devem ser consideradas e tratadas como pessoas inocentes até que venha uma condenação e essa condenação transite em julgado. Eles aguardam o julgamento privados de liberdade. Essas pessoas correspondem a 33,47% da população carcerária nacional. Presos provisoriamente em regime fechado.”

As afirmações são coordenador da Comissão Sobral Pinto de Direitos Humanos da OAB do Rio Grande do Sul, o advogado criminalista Roque Reckziegel, professor de Direito Penal da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre (e primo de Rodolfo Lucena). Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele analisa a situação do sistema prisional brasileiro, apontando:

“O excesso de pessoas no sistema prisional causa a superlotação. Eu considero, e não sou uma vez isolada, que a superlotação prisional, o excesso de decretações de prisões provisórias, como a preventiva, acaba por inchar o sistema prisional, causando a superlotação, de onde decorrem todas as demais mazelas do sistema prisional.”

Tal situação faz com que ao preso sejam impostos sofrimentos extras, muito além da privação de liberdade –que é a pena prevista na legislação brasileira. O que faz com que o professor Reckziegel afirme: “Só quem conhece um pouco da vida prisional deste país consegue entender o horror que é, a máquina de moer carne que é o sistema penitenciário nacional. Para mim não importa quem, não importa o crime praticado, eu sempre vou me sentir muito chocado com aquilo que acontece com pessoas que são condenadas a penas privativas da liberdade.”

Avaliação compartilhada por organismos internacionais, diz ele (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):

“Já é aceito convencionalmente pelos tribunais internacionais e pelas comissões internacionais de direitos humanos que a superlotação carcerária consiste em tratamento desumano e degradante do ser humano, que é vedado expressamente pela nossa Constituição. E, em alguns casos, essas pessoas que convivem em ambientes superlotados também são vítimas do crime de tortura, também vedado na nossa Constituição Federal.”

Foi essa concepção, aliás, que baseou recente decisão de uma juíza gaúcha, que determinou que fossem contados em dobro os dias passados por presos no Presídio Central de Porto Alegre. A resolução agora está suspensa, aguardando o julgamento do mérito, mas continua a provocar reação violenta de pessoas e grupos. Ao que Roque Reckziegel responde:

“Causa-me espanto que não ocorra semelhante barulho dessa mesma sociedade quando ocorridos malfeitos nos diferentes presídios do país em detrimento da população carcerária, quando lhe são solapados os seus mais comezinhos direitos.  Aliás, muitas vezes o que se vê é a sociedade aplaudindo quando os presos são maltratados, esquecendo que o contrato social prevê, como pena mais grave, a privação de liberdade, e só. Tudo que for além da privação de liberdade é excesso e, como tal, ilegal e inconstitucional.”

A questão, aliás, foi abordada pelo professor de direito penal em artigo que você pode ler CLICANDO AQUI.

Presos em corredor do Presídio Central de Porto Alegre (Arquivo Pessoal/Roque Reckziegel)

Na entrevista, Reckziegel fala também sobre o caráter discriminatório da Justiça e do sistema prisional:

“Nossa população carcerária, já há muito tempo, é formada por aquela parte mais vulnerável da população. Na década de 1950 ou 1960, o grande criminalista Heleno Fragoso cunhou uma expressão que até hoje é utilizada no meio jurídico, que é aquele que diz que a clientela do sistema prisional é composta pelos três “PPP”, pretos, pobres e prostitutas. Era aquela parcela vulnerável da população, aquela parcela da população sempre considerada como os suspeitos de ocasião, que acabavam então se encontrando com o Estado, às vezes sendo a única oportunidade de se encontrar com o Estado, nas barras do tribunal criminal, e posteriormente entrar num sistema prisional que, a meu juízo, é muito mais criminógeno do que preventivo ou ressocializador.”

Os números de hoje reforçam essas afirmações:

“Na população carcerária de hoje no Brasil, em termos gerais, conforme o Censo realizado pelo IBGE, a maioria da população carcerária é negra, é não branca. No perfil socioeconômico, a grande maioria, maior ainda que o número de negros, que gira em torno de 68,2%, é composta por pessoas consideradas pobres, das classes C e D para fora. No perfil educacional, a maior parte de nossa população carcerária não tem o ensino fundamental completo. Ainda a grande maioria provém de famílias disfuncionais, via de regra os pais também presos. Nosso sistema é extremamente seletivo, e atinge de fato esta parcela da população: negros, pobres e, faltou lembrar, jovens, porque a maioria dos nossos condenados, que cumprem pena, tem menos de 29 anos. O que é uma tragédia porque muitas vezes eles perdem a melhor parte da vida, dos 20 aos 30 anos, grande parte dessas pessoas estão lá recolhidas, sem receber absolutamente qualquer tipo de tratamento penal. Não há uma preocupação das nossas instituições penitenciárias, salvo raras e honrosas exceções, de fazer um tratamento penal. Lamentavelmente, não temos políticas públicas efetivas e efetivadas para dar um tratamento penal para essas pessoas privadas de liberdades.”

O que é um grande erro, no entender do coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB gaúcha. Erro que pode se voltar contra a própria sociedade punitivista:

“Certa vez, visitando um presídio, vi uma placa na frente do estabelecimento, que dizia assim: ‘Hoje eles estão contidos; amanhã eles estarão contigo’.  Sendo verdadeiro isso, como de fato é, nós, como membros da sociedade, deveríamos nos preocupar exatamente com a utopia da ressocialização, a utopia da reeducação. Chamo isso de utopia porque a gente tem que sempre procurar caminhar para atingir o nível maior de reeducação e de ressocialização. Mas todo o passo que nós dermos já vai ter um reflexo muito grande para aqueles que estão fora das prisões.”