Íntegra do pronunciamento de

Maria Victoria Benevides

em evento realizado no Tuca, em São Paulo,

para marcar os cinquenta anos da Comissão Justiça e Paz

         Salve! Saúdo a todas e todos com muita alegria neste encontro de regozijo e de fraternidade. Nossa Comissão Justiça e Paz, fundada em 1972, em plena ditadura militar, completa 50 anos, meio século de construção e lutas, VIVA!

Ditadura, resistência, anistia, democratização, Constituição cidadã, governos democráticos, novo golpe, ascensão de extrema direita, morticínio na pandemia e violências de todo tipo …e nós cá estamos, no final de 2022, no fim do pior governo da nossa história republicana. Estamos décadas mais velhos, mas com a “juventude acumulada” pedimos as bênçãos de Dom Paulo Evaristo Arns para renovar, hoje – saudando a primavera democrática tão ansiada, com a vitória de Luiz Inácio —   nossa esperança e nosso compromisso com a defesa dos direitos humanos.

Vivíamos tempos terríveis quando Dom Paulo, então o novo arcebispo de São Paulo, reafirmou sua convicção sobre o caráter terrorista do regime inaugurado com o golpe de 1964, e fez da Cúria Metropolitana o centro de resistência à política de sequestros, assassínios e torturas de presos políticos ou de apenas suspeitos de serem oposição aos governos militares. Dom Paulo manteve as portas abertas e o coração compassivo para receber, diariamente, dezenas de perseguidos, de familiares dos presos e desaparecidos – independentemente de orientação política ou religiosa, assim como os hermanos exilados do Cone Sul.

A criação da Comissão Justiça e Paz, em 1972, foi uma decorrência natural do compromisso de Dom Paulo com a justiça e a solidariedade, movidas pela fé inabalável na dignidade intrínseca de todo ser humano. Daí, desde sempre sua energia foi direcionada para o apoio aos mais vulneráveis; logo que foi nomeado bispo auxiliar, em 1966, decidiu visitar os presídios e constatar as condições desumanas dos “irmãos”, vários (como ainda hoje) sem culpa formada. Mais tarde visitaria os dominicanos presos e os demais, denunciando as torturas e mobilizando apoio de advogados, como os aqui presentes José Carlos Dias, Belisário dos Santos, Marco Antônio Barbosa, Maria Luiza Bierrenbach, Antônio Funari e nosso querido presidente José Gregori.

Documentos guardados pelo Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, mostram o papel de Dom Paulo na liderança de um movimento internacional de denúncia dos crimes contra a humanidade praticados no Brasil.

Quando se tratava de casos de tortura a coragem de Dom Paulo parecia irradiar “da mão de Deus”: enfrentava autoridades civis e, sobretudo, militares, mesmo sabendo do risco de ser, no mínimo, escorraçado, como na “visita” ao General-presidente Médici. Seu relato: “Fui oferecer-lhe uma encíclica papal muito bonita (Rerum Novarum). Ele recusou e disse: “Seu lugar é na sacristia. O meu é defender generais e ministros ameaçados de morte”. E gritou, gritou, gritou. Eu me levantei e disse: “General, agradeço o senhor ter me chamado, mas a verdade é essa: em São Paulo a tortura está sendo quotidiana e fatal” (Cult, nº78, 2004). Dito e feito, nosso arcebispo enfrentou todo tipo de pressão e ameaças, mas foi incansável nos momentos que exigiam sua autoridade e sua coragem, como nos atos na Catedral da Sé por Alexandre Vanucchi, Santos Dias, Vlado Herzog, o retorno dos ossos de Frei Tito. A pesquisa para o livro-denúncia Brasil: nunca mais é exemplar de sua responsabilidade (garantiu o anonimato dos autores) e de seu fraterno ecumenismo, partilhando-a com o Pastor Jaime Wright.

Nosso arcebispo era um homem culto – e não apenas em Teologia e outros temas da filosofia, mas também em literatura e Ciências Sociais. Mas nunca demonstrou a menor distância que intimidasse o povo menos letrado, com quem conversava, orava e cantava, além, é claro, de animar e abençoar suas lutas por direitos.  Um de seus diletos discípulos, Padre Júlio Lancelotti, fiel na defesa dos oprimidos, ecoa dom Paulo: “Não adianta falar ‘Deus acima de tudo’ se coloca os pobres abaixo do nada”. A “opção preferencial pelos pobres”, decidida no Encontro de Puebla, em 1979, foi rigorosamente encampada por Paulo Evaristo, Cardeal Arns, que já tinha larga experiência na área, pelo menos desde que liderou, em 1973, a “Operação Periferia”. Contaram com seu firme apoio as Comunidades Eclesiais de Base, a Comissão Pastoral da Terra e o Conselho Indigenista, entre outras entidades.

Com as lutas da sociedade civil pela democratização, Dom Paulo inspirou e apoiou a CJP em sua atuação política, em torno da anistia, das campanhas contra a Lei de Segurança Nacional e o chamado “entulho autoritário”, pela Constituinte livre e soberana, pela participação popular, pela integração latino-americana, pelo amplo apoio aos movimentos sociais. Quando eu escrevia a história da Comissão Justiça e Paz destaquei um aspecto que me parece muito revelador da tomada de consciência, na sociedade brasileira, sobre a temática nova dos direitos humanos. Houve – e ainda há- uma reação muito negativa, mas para seus defensores transformou-se em uma luta pela democracia, a ser conquistada diariamente: os direitos humanos nas democracias contemporâneas incluem os direitos civis e liberdades individuais e grupais, mas também os direitos sociais e econômicos, culturais e ambientais.

É especialmente relevante destacar o trabalho da Comissão, com a inspiração de nosso mestre Paulo Freire, na organização de projetos de Educação em Direitos Humanos no final dos anos 1980. Nossa querida presidente de honra, Margarida Genevois, assumiu a EDH como um programa de vida e ainda hoje participa da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, espalhada pelo país.

Lembramos, com emocionada gratidão, os companheiros que partiram: nosso primeiro presidente Dalmo Dallari, Antônio Candido, Milton Santos, Waldemar Rossi, Candido Procópio, Flavio di Giorgi, Alfredo Bosi, Íris Ariê, Josefina Bacariça, Antônio Carlos Malheiros, Goffredo da Silva Telles Jr., Hélio Bicudo, Ligia Bove, Plínio de Arruda Sampaio, Paulo de Mesquita Neto. Exemplos de vida, legado perene!

Se estivesse entre nós, o que faria Dom Paulo hoje?  Não tenho a menor dúvida de que ele estaria nos inspirando e nos apoiando com a radicalidade de sua opção pelos mais vulneráveis e, certamente, dando a força de sua ampla credibilidade – no país e no exterior – para a defesa da democracia e dos direitos humanos. Isso significa que Dom Paulo continuaria na liderança da defesa firme dos  povos indígenas e quilombolas; dos povos tradicionais, como ribeirinhos e caiçaras; das comunidades urbanas pobres e periféricas, abandonadas pelo poder público; dos povos do campo, sofridos com a violência dos “donos do agro”; da população em situação de rua; do povo negro, sobretudo jovens e mulheres negras vítimas de todas as formas do racismo que humilha e mata, como nos casos frequentes da violência policial e das “balas perdidas”; das pessoas de orientação sexual discriminada; assim como a defesa dos próprios defensores e defensoras dos direitos humanos

Dom Paulo estaria na luta com sua coragem lúcida e serena: denunciaria os governos pela ação violenta das polícias militares; pressionaria os empresários para programas de apoio ao emprego; pressionaria o governo e os parlamentares para a manutenção do auxílio emergencial em nível razoável; e, claro, assumiria a liderança de campanhas contra a fome.

E, tenho certeza, Dom Paulo não admitiria o conforto do pessimismo que paralisa a resistência e justifica a inércia.

Dom Paulo faz muita falta. Estamos felizes com a derrota do presidente que escarneceu da democracia e dos direitos humanos durante todo o governo, mas sabemos que começa muito árduo o trabalho de reconstrução de nosso país, tão marcado por desigualdades abissais, antigas e novas. Os valores éticos se impõem, e nosso compromisso permanece ativo na busca da justiça, na compaixão, na escuta, na solidariedade, na empatia enfim. Acreditamos que as bandeiras imemoriais da liberdade, da igualdade e da fraternidade continuam sendo o sal da terra.

Querido Dom Paulo, nos ilumine, nos proteja e não se esqueça de nos enviar, sobretudo nas horas mais ameaçadoras, a sua curta, exigente e afetuosa mensagem: CORAGEM!