“O grupo do Brasil é um dos mais fáceis. O Brasil não vai ter muita dificuldade para avançar às oitavas. O sorteio foi muito generoso com a seleção brasileira. O caminho para o Brasil do Tite se apresentou facilitado, nesse primeiro momento. Vejo algumas dificuldades pelo caminho para outras grandes seleções: a gente pode ter, já nas quartas-de-final, um França e Inglaterra; podemos ter nas oitavas um encontro de Espanha contra a Argentina.  Acho que o Brasil vai chegar longe.”

Essa é a avaliação do jornalista Walter Falceta Jr., veterano de coberturas de Copas do Mundo, falando ao TUTAMÉIA horas depois da realização do sorteio que colocou o Brasil no grupo G, ao lado de Camarões, Suíça e Sérvia, contra quem estreia no dia 24 de novembro, às sete da manhã.

Cofundador do Coletivo Democracia Corinthiana e seu primeiro presidente, em parceria com Juliana Felício, Falceta Jr. fez questão de vestir a camiseta da seleção –uma histórica, com autógrafos do time de 1998—para dar a entrevista (clique no vídeo para ver a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV):

“Decidi usar a camisa do Brasil nessa entrevista porque esses fascistas se apropriaram de um símbolo nacional. Eu não estou falando nem do verde-amarelo nem da bandeira, mas de um símbolo nacional, que é a camisa da seleção brasileira, que já foi envergada por figuras maravilhosas, como Garrincha, Pelé, Doutor Sócrates, então isso é um símbolo nosso, isso é nosso. Eles não podem tomar da gente. Se eles tomaram, a gente precisa recuperar. É por aí que voa meu pensamento nesse momento.”

O PODER DA GRANA

Ele destaca que, apesar da cerimônia e da festa no sorteio, a Copa acontece em um palco conturbado:

“Fiz uma pesquisa e cheguei à conclusão de que, realmente, coisas terríveis aconteceram nesse período de preparação para a Copa. Condições muito insalubres de trabalho. No site da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um relatório dá conta de que, só em 2020, morreram cinquenta operários em obras da Copa. A OIT diz também que 500 pessoas ficaram feridas gravemente, e algumas desabilitadas permanentemente. Feridos leves, 37.600. Além disso, o jornal britânico “The Guardian” fez um levantamento mais amplo, chegando a uma conclusão muito estarrecedora: 6.500 mortes no Catar desde 2010, que foi quando começaram as obras para a Copa –isso inclui não somente a construção de estádios, mas também obras de infraestrutura, estradas, setor hoteleiro. É muita gente!”

De certa forma, a Copa no Catar é também um retrato da situação do futebol no mundo:

“Como é que um país desses consegue realizar e sediar uma Copa? É o poder da grana! Não é pela representatividade futebolística, não é um país com uma população numericamente expressiva, então é por conta do uso de marketing. Eles estão trabalhando com a marca Copa do Mundo. É mais um negócio do petróleo, do gás natural, que trabalha com sua publicidade. Constituiu um brand (marca) e vai se projetar no mundo por meio disso. A Copa do Mundo é sempre uma maneira de fazer um imagewashing, uma lavagem de imagem para se situarem melhor no ambiente dos negócios.”

Processo em que a colaboração da Fifa é evidente, diz Falceta Jr.:

“Eu vi a manifestação do presidente da Fifa hoje, o Gianni Infantino. Ele passou um pano pro titular dinástico, pro emir da vez. O regime do Catar não é exatamente um regime democrático. Essa casa do Al Thani (xeque Tamim bin Hamad bin Khalifa Al Thani), a dinastia que está no poder, daqui a três anos completa duzentos anos no poder. Duzentos anos! Não é um país que é um exemplo de democracia, de respeito aos direitos humanos. E acaba recebendo a chancela da Fifa.”

O jornalista lembra as denúncias de corrupção e os processos detonados a partir do anúncio, há mais de dez anos, do Catar como sede da Copa:

“Blatter, então presidente da Fifa, foi processado, derrubado, o Platini caiu em desgraça, mais um monte de gente da Fifa, e acabaram prendendo o José Maria Marin, que era o nosso representante de triste memória. Houve até um momento nesse período, em 2015/2016, em que se cogitou em cassar o direito do catar de sediar a Copa, mas aí já tinha muito dinheiro envolvido, muitas empresas trabalhando nessas obras de infraestrutura, então isso não avançou.”

DEMONIZAÇÃO DA RÚSSIA

Ele segue na sua avaliação:

“A Fifa continua sendo uma entidade importante no mundo. Hoje ela tem 211 filiados, é uma Nações Unidas do B, então é importante.  Mas é um órgão viciado. Há uma cultura antiga, pedante, arrogante. As coisas demoram a mudar, as regras do futebol demoram a mudar –de vez em quando mudam, mas não mudam direito. Há sempre essa demanda para que a Fifa seja mais clara, mais transparente. E ela não é, porque está presa a determinadas tradições muito antigas e também a questões de poder, que estão associadas ao poder corporativo e também ao poder de Estados, de governos.”

O resultado é o claro uso político da entidade:

“Não somente na Fifa, mas também no Comitê Olímpico, as influências políticas são muito determinantes. Por exemplo: mesmo antes da guerra contra a Ucrânia, já existia um processo de demonização da Rússia, há muito tempo. Qualquer coisinha… Tem casos do doping em todo lugar, até mesmo nos países do ocidente, nos Estados Unidos, na Europa Ocidental, mas quem paga o pato é a Rússia. A Rússia vaio para uma Olimpíada já humilhada. Tem de hastear uma bandeira branca, os caras têm de fingir que não são russos, têm de cantar o Hino do Comitê Olímpico, porque não podem cantar o Hino da Rússia. É uma tremenda sacanagem.”

Falceta Jr. continua:

“A Rússia, agora, também foi excluída dos torneios da Fifa. Mas nada disso aconteceu quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, por exemplo. Então que medidas são essas? Que equivalência, que equidade é essa, se para uns tudo pode e para outros nada pode? Esses comitês e a Fifa são contaminados por interesses políticos e, principalmente, pelos interesses neoliberais capitalistas ocidentais. Eles mandam em tudo e vai demorar muito até se mudar esse cenário.”

MOMENTO PERIGOSO

Um cenário que contamina o futebol por inteiro, não só nas ingerências políticas, mas na própria estrutura dos clubes, avalia o jornalista:

“O futebol hoje é um espetáculo de branding, é uma construção, um constructo de marcas que tem por trás um esporte o esporte mais popular. O esporte em si foi secundarizado. As marcas de equipamento esportivo fazem partem desse pool de empresas que mandam no jogo. Mas existem muitas outras empresas envolvidas, mesmo que não explicitamente.”

Isso traz riscos, como a transformação dos clubes em empresas, as sociedades anônimas do futebol:

“A gente está num momento muito perigoso do esporte, especialmente no Brasil. Em boa parte do mundo, o futebol já é uma atividade corporativa, uma atividade de empresas, então os clubes têm donos. Aqui no Brasil a gente ainda tinha os times que são propriedade de seus torcedores de seus fãs, e basicamente ainda é assim com a maior parte dos grandes clubes brasileiros. Mas agora vende-se a ideia de que as SAFs são inevitáveis, que o processo de venda e privatização dos clubes de futebol é inevitável. E daí vem a segunda mentira: que isso é bom. É uma farsa! Porque boa parte dos clubes que serão transformados em sociedades anônimas do futebol ficarão na conta dos mesmos tubarões que hoje exploram os clubes. Vão montar pools de investidores, possivelmente eleger alguns laranjas, testas de ferro, e vão comprar os clubes.”

FINAL DOS SONHOS E DOUTOR SÓCRATES

Falceta Jr. comenta os problemas já ocorridos nas privatizações de alguns clubes, fala sobre a presença de investidores estrangeiros, levanta a hipótese de que clubes rivais podem vir a serem comprados pelos mesmos grupos econômicos e aponta que a solução não é limitar a propriedade dos clubes, mas sim ampliá-la, fazer com que mais gente, com que a torcida participe, vote.

Afinal, apesar de tudo isso, o futebol pode ser também uma escola, um ponto de encontro, um palco de convergências: “O esporte é importante. O esporte, bem trabalhado, pode patrocinar, sim, o entendimento, pode patrocinar a paz, pode participar o fim de conflitos, de preconceitos étnicos e religiosos. O futebol tem, sim, esse papel civilizatório”.

Além, é claro, de trazer alegrias, lembranças e esperanças para quem torce:

“Eu não acho impossível uma final do Brasil contra a Inglaterra. É possível. Se aqui é o país do futebol, e a Inglaterra é o país que inventou o futebol moderno, acho que seria a final dos sonhos. Eu torço por uma final entre Brasil e Inglaterra. O Brasil, nas poucas vezes em que foi mestre no mundo, ele o foi pelo futebol. O Garrincha soube ensinar alguma coisa para o mundo. E o Doutor Sócrates soube ensinar muitas coisas para o mundo. Acho que ele é até mais reconhecido lá fora do que aqui, não somente como um gênio da pelota, um gênio da bola, mas também um grande ativista político, um humanista, um filósofo, uma figura de quem eu sinto muita falta. Esse cara aí faz falta.”