A porta tremeu com socos, tapas, uma confusão, a campainha tocando, bzzzzz! “Abre, abre, abre!”

No susto, sem saber o que fazer, abri.

Era meu pai. Branco, branco, branco, arfante, arquejante, olhos esbugalhados que os óculos grossos não escondiam, meio curvado, meio tonto.

“Escapei!”, ele disse. “Dessa eu me livrei!”, segue repetindo, senta numa cadeira –ou talvez no sofá da sala–, eu ainda assustado, um guri de sete anos desnorteado com o estado do meu pai naquele início de tarde, em um dos primeiros dias de abril de 1964.

Ele estava indo para o trabalho. Tinha descido do ônibus no ponto final do centro, em frente ao Mercado Público de Porto Alegre. Precisaria cruzar a Borges de Medeiros, passar em frente à Prefeitura Velha, arrodeando o chafariz da praça Montevidéu para chegar à Siqueira Campos, andar ainda dois quarteirões até o prédio da secretaria estadual onde era funcionário público, assistente social.

Mal desceu do ônibus, porém, ouviu mais do que viu, sentiu o cheiro da confusão. Na Borges, ali mesmo, entre o Mercado e a Prefeitura Velha, estudantes protestavam contra o golpe militar. Gritavam slogans, erguiam cartazes, traziam faixas, queriam resistir sabe-se lá como, talvez o vigor da vontade, a chama da esperança, o poder do direito.

Veio a força do cassetete. Descendo a Borges, chegaram os brigadianos, os soldados da Brigada Militar. Vinha em força militar, desfeita em correria e gritaria, em perseguição para acertar quem quer que fosse, onde quer que fosse, abrir cabeças, quebrar braços, chutar canelas.

A manifestação se espalha, gritos para todo o lado, os brigadianos enlouquecidos já não escolhem vítima: os passantes, os que estavam por ali, qualquer um na frente leva bordoada.

“Foi quase”, disse meu pai. Quando um cassetete passou voando à sua frente, decidiu que não dava para ficar ali de bobeira.

Era preciso fugir, sim, mas também era preciso chegar ao trabalho.

Correu para o outro lado, passou em frente ao Chalé da Praça XV, cruzou a linha dos bondes, ainda olhou a velha arcada onde se vendia pastel, caldo de cana, chá de mate, e enveredou pela Marechal Floriano para subir até a Salgado Filho, pensando em dar uma baita volta, quem sabe conseguiria contornar o território da pancadaria.

Atarantado, caiu numa ratoeira.

Um pelotão, um batalhão, um grupo de brigadianos descia a Marechal vindo da Riachuelo. Na própria Salgado Filho, avenida larga onde ainda despontava, na esquina com a Borges, o Mata-borrão, prédio de arquitetura especial onde ficava a sede da companhia telefônica, a soldadesca também fazia barbaridades.

A porrada veio com endereço certo, contou meu pai. “Ia me quebrar as costas”, mas, de algum jeito, conseguiu se abaixar, quebrar o corpo, sair do apertume e enveredar pelo outro lado da Salgado, em direção ao bairro, descer até a Alberto Bins e pegar o bonde salvador.

Foi assim que meu pai, catolicão integrante do Movimento Familiar Cristão, frequentador, com toda a filharada, dos filmes e das perorações da Cruzada do Rosário pela Família (movimento anticomunista liderado pelo gringo padre Peyton), aprendeu e me ensinou o que era o golpe militar naqueles idos de 1964.

Essa foi uma das lembranças que desenterrei de mim mesmo ao longo dos mais de oito quilômetros de uma caminhada em homenagem ao Dia dos Pais, especialmente em memória de meu pai, Joaquim de Lucena, morto há cinco anos.

Caminhar e contar histórias é o que faço: histórias das praças e das ruas, dos parques, dos figurões que a cidade homenageia e dos mais importantes ainda que não são homenageados; histórias de corredores e de corridas, de jornais e jornalistas, de velhos e de sonhos, do que me der na telha (clique no vídeo para acompanhar o percurso e a narração e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Na jornada do dia, fui do cemitério da Consolação ao Mercado da Lapa, passando por lugares de lembranças do meu pai –ruas, parques, praças, shoppings, casas e coisas que até não existem mais nesta cidade que destrói o passado a cada dia em nome do progresso –na real, em nome da especulação imobiliária.

Caminhar –em outros tempos, correr—é uma forma de lidar com a vida. Meses depois da morte de meu pai, no aniversário de 89 anos que ele não chegou a comemorar, fiz uma jornada mais longa, cem quilômetros em várias etapas, buscando deixar marcadas no asfalto histórias sem conta.

O projeto se chamou RUMO AOS CEM –a história do nome voltei a contar no vídeo de hoje, em que também lembrei a origem multicentenária dos Lucena, as traquinagens das crianças no Sesc Pompeia, os macacos nas já hoje não existentes jaulas do parque da Água Branca e mais um montão de coisas –até do Teorema de Pitágoras falei.

No total, percorrei pouco mais de oito mil e setecentos metros –só depois me dei conta de que poderia ter chegados aos 8,8 quilômetros, para ornar com a idade que tinha meu pai quando morreu. Fiquei meio chateado, mas é assim que são as coisas feitas no vai da valsa: primeiro a gente faz, depois melhora –se der. Se não der, está feito.

Vamo que vamo!

 

PS.: Se você quiser conferir alguma das etapas ou todas as jornadas do RUMO AOS CEM, clique nos links a seguir.

Cecília e Joaquim de Lucena, em algum momento do século passado, provavelmente pelos anos 1970

Rumo aos cem! – em memória de JOAQUIM DE LUCENA – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/rumo-aos-cem-em-memoria-de-joaquim-de.html

Homenagem a JOAQUIM CÂMARA FERREIRA no projeto RUMO AOS 100 – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/homenagem-joaquim-camara-ferreira-no.html

DOR E RAIVA, MEMÓRIA E ARTE no caminho do projeto Rumo aos 100 – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/dor-e-raiva-memoria-e-arte-no-caminho.html

CECÍLIA DE LUCENA, alegria na voz e povo no coração – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/cecilia-de-lucena-alegria-na-voz-e-povo.html

QUINCAS BORBA revisitado no projeto Rumo aos 100 – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/quincas-borba-revisitado-no-projeto.html

GRITO DOS EXCLUÍDOS tem trompetista e cantoria de Lulalá – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/grito-dos-excluidos-tem-trompetista-e.html

Homenagem a JOAQUIM SEIXAS no projeto Rumo aos 100 – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/homenagem-joaquim-seixas-no-projeto.html

NABUCO é celebrado na corrida dos joaquins – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/nabuco-e-celebrado-na-corrida-dos.html

Corrida vai da PATA DE VACA à revolução esquecida – https://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/corrida-vai-da-pata-de-vaca-revolucao.html

HOMENAGEM A TIRADENTES ENCERRA CORRIDA DOS JOAQUINShttps://lucenacorredor.blogspot.com/2018/09/homenagem-tiradentes-encerra-corrida.html