“O programa econômico que Bolsonaro representa é um programa falimentar, e rapidamente a população vai perceber o quão falimentar é este programa. É um programa que, entre outras coisas, vai pauperizar, concentrar renda, quebrar ainda mais os parcos direitos que setores vulneráveis da população têm. E isso a população irá perceber rapidamente. E, dentro desse horizonte, é claro que a única maneira de governo será a crise permanente.”
Essa é a avaliação que faz o filósofo Vladimir Safatle, professor da USP, a respeito das perspectivas do governo que vai se instalar no Brasil a partir de primeiro de janeiro próximo. A fala de Safatle aconteceu durante o debate “Construindo a Resistência”, realizado logo depois do segundo turno das eleições presidenciais, quando muitos ainda estavam de “ressaca eleitoral”, mas já pensando no Brasil que vem aí.
O evento foi convocado e coordenado pelo professor Ruy Braga e teve ainda como palestrantes os professores Marilena Chauí e André Singer. Realizado no dia primeiro de novembro passado, havia sido marcado para as modestas dependências da sala 14 do Departamento de Sociologia da Fefeleche, como é conhecida a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Na hora, perceberam o público era muito maior do que o espaço reservado. O evento foi transferido para espaço mais amplo, mas novamente estradulou os limites físicos, acabando por ter lugar no vão do prédio da História e Geografia, com o público se acotovelando onde fosse possível.
Com a transferência, a gravação prevista teve de ser cancelada, mas Indra Seixas Neiva fez uma transmissão ao vivo pelo Al Janiah, espaço cultural e político árabe. A jornalista Sônia Rosa Maia realizou a transcrição da conferência e gentilmente nos autorizou a usar o trabalho.
Assim, publicamos a seguir a íntegra da participação do professor Safatle no evento “Construindo a Resistência” (títulos, entretítulos e destaques são responsabilidade aqui do Tutaméia).
NOSSA RESPONSABILIDADE É ABSOLUTA
por Vladimir Safatle
Gostaria de começar lendo um poema:
“Você diz: nossa causa vai mal
A escuridão aumenta, a força diminui.
Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo
Estamos em situação pior que no início.
Mas o inimigo está aí
mais forte do que nunca.
Sua força parece ter crescido
ficou com a aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros
não há como negar.
Nosso número se reduz.
Nossas palavras de ordem estão em desordem.
O inimigo distorceu muitas de nossas palavras
até ficarem irreconhecíveis.
Daquilo que dissemos, o que é agora falso?
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda?
Somos o que restou lançados fora da correnteza viva.
Ficaremos pra trás por ninguém compreendidos?
E a ninguém compreendendo? Precisamos ter sorte?
Isso você pergunta. Não espere nenhuma resposta senão a sua.” (“Aos Que Hesitam”, de Bertold Brecht)
Isso é pra mostrar que a situação na qual estamos hoje já aconteceu antes. Em outros lugares, em outras situações. E essas situações foram vencidas. A situação na qual estamos hoje será vencida, mais uma vez. Se soubermos, de fato, agir de acordo com a gravidade do momento.
Todos nós sabemos quão grave é a nossa situação. Sabemos o tipo de experimento do qual somos objetos hoje em dia: uma mistura de neoliberalismo brutal e de regime autoritário com características fascistas.
É verdade, como o próprio André levantou, chamar 55 milhões de brasileiros de fascistas seria um erro crasso. Mas é verdade, também, que dentro dos eleitores do sr. Bolsonaro vivem pelo menos três tipos.
Há aqueles que queriam rejeitar tudo que está aí, e que infelizmente não tiveram outra alternativa pro seu desejo anti-institucional do que a extrema-direita, já que a esquerda não foi capaz de constituir uma alternativa crível a estes que tinham este desejo de ter uma ruptura radical com o que aconteceu neste país até hoje.
Por outro lado, sabemos também, que existe dentro desse eleitorado, um setor que é radicalmente antiesquerdista, antipetista, e que poderia ter ido para qualquer lado, e que foi responsável, ao assumir uma candidatura de extrema-direita, que tinha, entre outras coisas, com seu elemento fundamental, o recrudescimento, a ressurreição dos piores fantasmas autoritários brasileiros, a ressurreição de todos os fantasmas da ditadura militar, ouvindo ou nos obrigando a ouvir de maneira clara e transparente, tudo aquilo que nós imaginávamos já ter sido perdido no interior da história. Um culto da violência explícito. Um culto do terrorismo de Estado, da tortura, porque afinal de contas nós sabemos muito bem, o sr. Bolsonaro não é apenas um representante da ditadura, como seria um Geisel e um Golbery. Bolsorano é Sérgio Fleury. Bolsonaro é a parte torturadora da ditadura. É o pior que a ditadura já produziu. E ele assume isso de maneira clara.
O programa econômico que eles representam é um programa falimentar, e rapidamente a população vai perceber o quão falimentar é este programa. É um programa que, entre outras coisas, vai pauperizar, concentrar renda, quebrar ainda mais os parcos direitos que setores vulneráveis da população têm. E isso a população irá perceber rapidamente. E, dentro desse horizonte, é claro que a única maneira de governo será a crise permanente.
Libera, então, a terceira parcela de seus eleitores, essa sim uma parcela claramente fascista, a utilizar dessa violência primária contra setores da população. Nós sabemos disso! E, antes de mais nada, é necessário ter a consciência clara do tipo de risco que corremos hoje em dia. Não há de se imaginar, como alguns gostariam de tornar seu desejo por realidade, que o poder irá civilizar este grupo. Que a partir do momento que assumirem o poder então vão ser, de uma maneira ou de outra, contrabalançados pelos poderes institucionalizados.
É óbvio que a partir de 1° de janeiro nós viveremos uma luta contínua daqueles que querem sim, no poder, impor um regime autoritário, custe o que custar. Porque é claro: o programa econômico que eles representam é um programa falimentar, e rapidamente a população vai perceber o quão falimentar é este programa. É um programa que, entre outras coisas, vai pauperizar, concentrar renda, quebrar ainda mais os parcos direitos que setores vulneráveis da população têm. E isso a população irá perceber rapidamente. E, dentro desse horizonte, é claro que a única maneira de governo será a crise permanente.
Nós já vimos muito claramente como essa ideia de crise permanente está presente nessa forma de governar. Ou seja, a todo momento haverá manobras diversionistas, haverá lutas contra escolas, lutas contra universidades. Não sei se vocês sabem, mas, na verdade, ou pelo menos para esses, o verdadeiro responsável da crise na qual o Brasil vive hoje, essa crise econômica, essa crise política, não é um sistema financeiro, não é um sistema bancário: o verdadeiro responsável pela crise são os professores de história. Porque professores de história são aqueles que, de fato, trouxeram para o país a inquietude, a mentira, a falsidade e nos colocaram neste ponto. (risos) Então, sabemos muito claramente que essas lutas, essas bravatas, são elementos fundamentais dentro de uma estratégia muito bem pensada.
Gostaria de lembrar que nenhuma verdadeira criação, nenhum verdadeiro fortalecimento da imaginação, foi feito sem antes um verdadeiro desamparo. Nenhuma possibilidade de recriar aquilo que até hoje nunca existiu neste país, poderia ocorrer sem isso. Essa luta que nós estamos aqui, lutando, ela iria ocorrer, em um momento ou outro.
Quando o sr. Bolsonaro sai falando bravatas contra os setores mais vulneráveis da população brasileira: contra as mulheres, contra a comunidade LGBT, contra os negros, isto não é uma bravata. Isso é uma estratégia e elemento fundamental de estratégia de governo, que consiste em sensibilizar a sociedade, é claro, ele toca em pontos vulneráveis da sociedade, ele faz com que setores da sociedade se volte contra isso, para que no dia seguinte ele fale que não era bem isso que ele queria dizer. E no dia posterior ele fala mais alguma coisa e continua esse elemento continuamente… enquanto o desmonte econômico do país, enquanto a destruição econômica do país corre solta sem que ninguém perceba.
Mas esta é a questão: nós conhecemos essa estratégia, nós entendemos esta estratégia, e nós vamos lutar contra ela. E aí vêm três questões que seria importante para nós discutirmos daqui pra frente. Porque é fato: se perguntarmos agora o que nós podemos fazer, muitos de vocês talvez estejam marcados por uma melancolia, muito forte, vinda deste sentimento de desamparo, de que no final das contas não temos mais nada a não ser nós mesmos, que os partidos não funcionaram, que as instituições não funcionaram, que os sindicatos não tiveram força e que nós ficamos um pouco perdidos em relação apenas à nossa força. Mas, nesse sentido, gostaria de lembrar, inicialmente, que aprendamos que nenhuma verdadeira criação, nenhum verdadeiro fortalecimento da imaginação, foi feito sem antes um verdadeiro desamparo. Nenhuma possibilidade de recriar aquilo que até hoje nunca existiu neste país, poderia ocorrer sem isso. Essa luta que nós estamos aqui, lutando, ela iria ocorrer, em um momento ou outro.
O país esperou por essa luta durante décadas. Ele acreditou que não precisava se confrontar com seus setores completamente arcaicos, autoritários e violentos. Ele achou que poderia criar um pacto e uma conciliação, que anulasse de uma vez por todas esses riscos. Ele errou. Ele fracassou. Não era possível!
Então, cabe a nós, hoje, cabe a todos vocês, de fato assumir esta luta, que não terminará amanhã, nem no mês que vem –ela durará um bom tempo. Nós precisaremos sobreviver a ela. Porque quando ela passar, enfim nós teremos condições de lutar de uma maneira absoluta por uma sociedade mais livre, mais justa e mais igualitária.
E eu terminaria dizendo três coisas: a primeira delas, acho que o próprio André já levantou, é muito claro que precisamos constituir um sistema de defesa, e um sistema de defesa includente, que consiga mobilizar todos aqueles que compreendem que sequer os princípios elementares de uma democracia liberal nós temos. Sequer isto! E esse modelo de defesa exigirá um tipo de mobilização que vamos começar a fazer daqui pra frente. No entanto, queria insistir neste ponto, porque nós corremos um risco. E o risco é o de apenas dizer não pro resto da sociedade. Dizer: nós não queremos isto. Dizer: nós não aceitaremos isto. “Nós não deixaremos que isto ocorra.” É claro que a força da negação, neste ponto, pode ter uma capacidade de mobilização, mas essa capacidade de mobilização tem um tempo definido. Ela não dura muito!
Nós temos duas coisas a fazer e elas serão duras, difíceis – uma delas, pelo menos –, mas serão completamente necessárias, porque precisamos voltar a falar à sociedade, com uma força afirmativa, de quem diz, de quem mostra à sociedade, de quem ouve a sociedade, quem ouve seus setores, ouve e fala a respeito daquilo que pode ser, daquilo que podemos ainda criar.
A esquerda governou este país por 13 anos, e bem. Erros ocorreram, muitos, vários, e nunca quisemos fazer de fato uma análise desse período, porque vivemos a todo momento em guerra. Mas agora é hora de fazer isso. É hora de mostrar à sociedade brasileira que autocrítica nunca foi fraqueza. Que autocrítica é força! Porque isso significa uma transformação. Não seria possível saber o que fazer sem errar. O caminho do erro é o caminho da verdade. E nós erramos. E erramos em muitos pontos. Digo nós no sentido mais includente possível. Nós, todos os partidos, todas as instituições, todas as classes ligadas ao pensamento progressista neste país.
A história brasileira espera que nós mostremos àqueles que querem impor uma sociedade autoritária, que eles perderão, sempre: hoje e sempre!
Nós não medimos os verdadeiros riscos. Nós nunca imaginávamos que algo como o que está acontecendo agora pudesse de fato ocorrer. Então, isso diz muito a respeito do que nós também somos capazes de pensar. E do que nós precisamos mudar para pensar aquilo que de fato pode ocorrer. Se este ponto for feito, nós podemos, novamente, voltar a fazer aquilo que é, de fato, nossa tarefa: sair de nossa universidade, que ao mesmo tempo discute, mas discutir também fora da universidade. Não ter medo de falar com a população.
Eu lembraria vocês que nestas últimas duas semanas, mesmo aqui na nossa universidade, criamos grupos que foram às periferias pra discutir. E é muito interessante ouvir qual foi o resultado. Muitas dessas pessoas ficaram surpresas com a abertura. Com a possibilidade de ter, de fato, uma discussão, uma interlocução. (Ficaram surpresas) com o fato de as pessoas pararem e quererem escutar e quererem falar. Estas pessoas tinham sido esquecidas! Radicalmente esquecidas pelo nosso modelo de vida universitária, que nos isola aqui.
E terminaria lembrando: muitos acham que podem nos impor um regime de medo! Muitos acham que são capazes de nos amedrontar, com todos os tipos de riscos e ameaças que podemos imaginar. Só que eles vão descobrir muito rapidamente que eles se confrontaram com a mais forte e com a última barreira contra toda e qualquer ameaça fascista neste país. Ninguém vai abrir mão dessa posição hoje. Porque nós sabemos muito bem, se nós falharmos agora, são gerações que vão pagar este preço. Aconteceu, por uma contingência, que fôssemos nós que estivéssemos aqui e agora. Nossa responsabilidade é absoluta. A história brasileira espera que nós mostremos àqueles que querem impor uma sociedade autoritária, que eles perderão, sempre: hoje e sempre!
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