“Eu os convoco para uma resistência que seja aquela que nos organiza, aquela que nos dá o caminho para a cada passo nós provarmos, de maneira irredutível, o fracasso que vem vindo aí.” Esse foi o chamado feito pela filósofa Marilena Chauí, professora emérita da Universidade de São Paulo, professor da USP, ao comentar as tarefas dos democratas frente ao governo que vai se instalar no Brasil a partir de primeiro de janeiro próximo.  A fala de Chauí aconteceu durante o debate “Construindo a Resistência”, realizado logo depois do segundo turno das eleições presidenciais, quando muitos ainda estavam de “ressaca eleitoral”, mas já pensando no Brasil que vem aí.

O evento foi convocado e coordenado pelo professor Ruy Braga e teve ainda como palestrantes os professores André Singer e Vladimir Safatle. Realizado no dia primeiro de novembro passado, havia sido marcado para as modestas dependências da sala 14 do Departamento de Sociologia da Fefeleche, como é conhecida a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Na hora, perceberam o público era muito maior do que o espaço reservado. O evento foi transferido para espaço mais amplo, mas novamente estradulou os limites físicos, acabando por ter lugar no vão do prédio da História e Geografia, com o público se acotovelando onde fosse possível.

Com a transferência, a gravação prevista teve de ser cancelada, mas Indra Seixas Neiva fez uma transmissão ao vivo pelo Al Janiah, espaço cultural e político árabe. A jornalista Sonia Rosa Maia realizou a transcrição da conferência e gentilmente nos autorizou a usar o trabalho.

Assim, publicamos a seguir a íntegra da participação da professora Chauí no evento “Construindo a Resistência” (títulos, entretítulos e destaques são responsabilidade aqui do Tutaméia).

ORGANIZAR A RESISTÊNCIA

por Marilena Chauí

Eu venho de duas experiências históricas políticas. A primeira é 64 68 e 75. Vou falar dela um pouco porque é dela que me lembro hoje. Mas venho também de uma outra experiência que é da resistência, da invenção, da criação e da possibilidade concreta através dos movimentos sociais, dos movimentos populares, das organizações do trabalho, dos sindicatos, da comissão de fábrica, de todo um universo que se constituiu das associações docentes, dos grêmios estudantis, que se formaram no correr deste processo e criaram o primeiro instante de democracia, de esperança e de liberdade no Brasil. E, por isso, peço licença pra falar dos dois momentos. O primeiro como um alerta e o segundo como uma proposta.

Venho de uma experiência na qual o medo não era uma palavra; o medo não era um acidente; o medo era aquilo que formava o tecido da nossa vida cotidiana. A gente tinha medo de sair de casa e não voltar, de voltar e não saber o que iria encontrar, de ir para a universidade e não saber se os colegas estavam aí ou se já tinham desaparecido. Pra onde? Se estavam mortos, presos, desaparecidos, torturados. Você olhava na classe e haviam buracos nas carteiras. E você dizia: onde estão esses alunos? Eles sumiram? Estão presos? Estão torturados? Estão mortos? Desaparecidos? Era isso o nosso cotidiano.

Mataram o Santo Dias, mataram a Margarida Alves, e foram matando, matando, em cada esquina. Surraram o Dalmo Dallari ali, na avenida Cidade Jardim, e ele foi encontrado quase morto porque estava organizando a Comissão de Justiça e Paz. Era isto que a gente vivia a todo momento, e é isso que não pode ocorrer agora.

Você ia ao ABC e você via o terror espalhado no rosto, na expressão e no discurso dos operários. Você ia na zona sul, nos confins da zona sul, ou nos confins da zona leste, e era o que você via. Sem cessar! Era ali que os esquadrões da morte operavam. Isso que a gente chama no fascismo de ‘os esquadists’, essas milícias esquadrists. Era o que tinha: eram esses esquadrões da morte.

Mataram o Santo Dias, mataram a Margarida Alves, e foram matando, matando, em cada esquina. Surraram o Dalmo Dallari ali, na avenida Cidade Jardim, e ele foi encontrado quase morto porque estava organizando a Comissão de Justiça e Paz. Era isto que a gente vivia a todo momento e é isto que não pode ocorrer agora.

Nós temos que estar atentos, porque num primeiro momento, antes da posse, você tem as esquadrists. E eu concordo com o que diz André, com Vladimir e concordo uma análise dos números feita pelo meu filho, que entende de estatística, mostrando que só tem 25% de fascistas, que é o verdadeiro eleitorado do Bolsonaro.

Ele começou com esses e terminou com esses. As coisas foram se acrescentando por mil e uma razões, que proximamente deveremos nos reunir para analisar, e que fizeram ele crescer. Várias! Mas tem esses 25%, que operam como esquadrists, não como política de Estado – operam como ação no interior da sociedade. E é por isso que você tem a menina morta lá, o menino espancado lá, você tem a professora que não pode entrar, tudo isso que nós (já) estamos vendo… a deputada que manda fazer a delação.

Tudo isso que está acontecendo no nosso cotidiano faz parte da maneira pela qual o esquadrão, os esquadrists, operam: à sombra e à margem da institucionalidade do Estado. Só que o Temer apresentou um Decreto, vocês viram o Decreto! E esse Decreto faz esse tipo de política ser uma política do Estado. E, portanto, temos que estar preparados para isto. Para que não se repita, na forma da tragédia, aquilo que ocorreu na forma do tranco. Porque farsa não vai ser. Vai ser uma farsa se nós agirmos para provar que é uma farsa.

E com isso passo para a segunda experiência que tive e à qual me reporto como uma fonte de lições, de experiências, de ideias, que é nossa resistência na forma de organização institucional. Ou seja, nós não podemos… e eu sei que pros mais jovens isso é muito difícil! Porque sei que vocês vêm de um mundo em que “não gostamos!”… E aí manda o Twitter para 40, 50, 60, vamos lá na Paulista, e manifestamos que não gostamos. “Passe Livre” vai lá e “não queremos”. Acabou!

Esse mundo da espontaneidade, do espontaneísmo, do voluntarismo, é o que tem que ser colocado, por enquanto, em compasso de espera. Nós temos que entrar em um processo lento, de organização institucional da nossa resistência.

Se você for lá e disser que “não queremos”, acontece como aconteceu com as mulheres ontem: a polícia vem, joga gás lacrimogênio e água em você. Vocês vivem num mundo que acabou! Por enquanto, porque nós vamos fazer ele reaparecer. (aplausos)

Essa é nossa tarefa, senão não estaríamos aqui. Então, esse mundo da espontaneidade, do espontaneísmo, do voluntarismo, é o que tem que ser colocado, por enquanto, em compasso de espera. Nós temos que entrar em um processo lento, de organização institucional da nossa resistência.

O que eu entendo por isso? Os centros estudantis, as associações docentes, os sindicatos, o MPL, o levante da juventude, a Mídia Ninja, todas as formas já existentes e outras por criar, que devem operar como grupos institucionalizados de pensamento e de ação.

Não pode ser uma coisa espontaneísta, que a gente faz explodir a cada 20 dias. Porque isso favorece (a eles)… (É) o que o Vladimir dizia: qual a melhor maneira de você gerir uma crise? Qual a melhor maneira de você esconder que tem uma crise econômica pra valer? Você vai gerir as manifestações espontâneas que pululam aqui e lá.

Não podemos dar esse presente pra eles. Eles não podem ter como presente a nossa ação que justifique o mascaramento ininterrupto de que tem crise e que não está funcionando. Daríamos de mão beijada um presente pra eles fazendo exatamente o que eles esperam que a gente faça.

Eles querem que a gente faça isso. O que nós temos que fazer, como dizia um velho barbudo, é um trabalho lento da toupeira, que cava silenciosamente por baixo da terra, e sempre de formas institucionalizadas, que foi o que eu aprendi com os movimentos sociais, populares e operários – que é se organizar e institucionalizar as formas de organização, de tal modo que elas tenham um pensamento, uma prática e elas sejam uma referência. Que eu possa levar os outros pra dentro dela e possa fazer com que ela saia e fale aos outros.

Se nós queremos que o nosso discurso, o nosso pensamento alcance fora das grades e dos vidros de vidrinho que fizeram ali, e queremos que vá além disso, é preciso que as pessoas se agrupem e percebam, a cada passo, que há um discurso de um grupo, um pensamento coletivo, que escuta, responde, fala, volta, aprende.

Então, eu os convoco para uma resistência que seja aquela que nos organiza, aquela que nos dá o caminho para a cada passo nós provarmos, de maneira irredutível, o fracasso que vem vindo aí.

Eu queria ainda lhes dizer, para concluir, por que nossa tarefa é tão difícil. Passei os últimos 30 anos da minha vida acadêmica e política tentando entender a estrutura da sociedade brasileira. É uma sociedade autoritária, violenta, hierárquica e que produz para si própria o mito da não violência brasileira. Um povo ordeiro, cordial, generoso, sensual, de uma história feita sem sangue. Então, (a ideia) é a de uma história feita sem sangue. Basta não colocar Canudos, Contestado, Praieira, 30, Abolição… se você fizer uma enumeração… é por isso que os historiadores são considerados os causadores da crise aqui no Brasil. Porque eles contam uma outra história que não é a do mito da não violência. E é por causa disso e vou pedir mil desculpas por falar isso, mas eu preciso falar, porque eu apanhei muito por causa disso, ainda apanho. Apanhei da direita e apanhei da esquerda.

Nós não seremos da servidão voluntária, porque nós temos a amizade, a liberdade, a esperança, a criação e o pensamento.

Outro dia quase apanhei fisicamente de um passageiro em um voo pra Brasília. Ele olhou pra mim e disse: “Você é a Marilena Chauí?” E eu disse: “Sou”. E ele: “Você é uma patética, ignorante, que produz o discurso do ódio e patati patatá”. Por que? Porque desde 2013 eu disse pra vocês que isso iria acontecer!

Mas agora vou terminar com as palavras desse jovem, chamado La Boétie, escritas quando ele tinha 17 anos, contra a tirania. Ele disse o seguinte: Por que se serve um tirano? O tirano tem dois olhos como qualquer outro; dois ouvidos como qualquer outro; duas mãos como qualquer outro; dois pés como qualquer outro. De onde vem que ele tem mil olhos pra ambicionar; mil ouvidos para nos escutar; mil mãos para nos esganar; mil pés para nos pisotear? De onde vem este corpo colossal com o qual ele nos domina? E ele responde: mas somos nós que demos pra ele! Nós demos pra ele os nossos olhos, os nossos ouvidos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa alma, os nossos filhos, a nossa honra! Nós demos tudo pra ele! E por que nós demos? Porque nós acreditamos que servindo a ele nós seremos servidos por aqueles que estão abaixo de nós. E nós desejamos, portanto, a servidão voluntária, porque somos tiramos! Servimos para que outros nos sirvam.

O que eu proponho aqui, na nossa luta organizada, lenta, da toupeira, que faz o seu caminho, que nós destruamos isso. Que nesse breve período que as eleições trouxeram, o relevantamento que houve no período da ditadura e que está aí agora posto, da servidão voluntária. Nós não seremos da servidão voluntária, porque nós temos a amizade, a liberdade, a esperança, a criação e o pensamento.