Neste último fim de semana (12 e 13.10), dois corredores do Quênia, uma mulher e um homem romperam barreiras que muitos julgavam intransponíveis para o corpo humano –ou dentro de nossas capacidades, mas só atingíveis daqui a muitos anos.

No domingo, Brigid Kosgei, de 25 anos, venceu a maratona feminina de Chicago com o tempo de 2h14min04, derrubando uma marca que já durava dezesseis anos. Obteve a conquista com tal facilidade que, logo depois da chegada, já dizia que imaginava poder ser mais rápido. Em breve, acredita as mulheres estarão correndo maratona sem tempos em torno de duas horas e dez minutos!

Na véspera, em Viena, o campeão olímpico e recordista mundial da maratona, Eliud Kigpchoge demonstrou ser possível ao ser humano correr a distância da maratona em menos de duas horas, marca que há décadas está nos sonhos de esportistas, treinadores, médicos –todos aqueles, enfim, de alguma forma relacionados ao mundo do esporte e das maratonas. Em um evento especialmente preparado para ele, completou os 42.195 metros em 1h59min40. E se tornou, naquele instante, “o homem mais feliz do mundo”, como disse ao completar o desafio.

Em termos de feito esportivo, apenas a marca de Kosgei conta para recorde. E será cantado em prosa e verso por muitos anos, porque a marca anterior, de 2h15min25, estabelecida em 2003 pela britânica Paula Radcliffe, parecia inatingível. Aliás, as corredoras não chegavam nem perto daquele número.

Nesse tipo de corrida, evoluir um segundo é resultado de longo trabalho, avançar um minuto é obra gigantesca, tirar diferença ainda maior, de dois ou três minutos, é coisa fantástica, dos sonhos.

Em geral, os recordes caem quando começa a haver uma massa crítica –quatro, cinco, seis, dez atletas fazendo marcas próximas ou derrubando recordes em distâncias menores, o que aponta para a possibilidade de melhores tempos nas provas mais longas.

No caso das mulheres, isso não vinha acontecendo, a marca de 2h15min25 ficou sempre lá longe, como um farol no meio do oceano. Durante anos, as melhores corredoras do mundo correram na faixa de 2h20 na maratona. Aos poucos, baixou para 2h18, chegando mesmo a 2h17. Mas são pouquíssimas as que correram nesta última faixa: EM TODA A HISTÓRIA da maratona feminina, APENAS SEIS VEZES o tempo final ficou na faixa das duas horas e 17 minutos, sendo DUAS DELAS cravadas pela própria Radcliffe.

Isso dá uma medida do feito de Brigid Kosgei, que, apesar de jovem, já tem uma boa experiência na maratona. Em nove participações, ocupou um dos dois primeiros lugares em oito ocasiões. E vem demonstrando ser supercapaz de manter ritmo forte ao longo de muito tempo: não por acaso, em setembro último quebrou o recorde da meia maratona, vencendo a Great North Run, na Grã-Bretanha, em 1h04min28.

Talvez seja esse número que dê a ela confiança para fazer previsões de maratonas ainda mais velozes. A questão é ver se ela consegue manter o ritmo. Até agora, demonstrou ser mestra nesse quesito, que talvez seja uma das grandes dificuldades no mundo da elite maratonística (e também entre os corredores em geral).

A prova em Chicago é um exemplo disso: Kosgei correu cada metade em praticamente o mesmo tempo, completando a primeira parte em 66min59 e a segunda, em 67min05!

SUB DUAS HORAS

Manter o ritmo com regularidade impressionante foi também a qualidade de ELIUD KIPCHOGE, forte candidato ao título de maior maratonista da história por causa de seus títulos, das quebras de recordes mundiais ao longo de sua carreira e das marcas surpreendentes cravadas nesses recordes.

Ele manteve um ritmo que variou de 2min48 por quilômetro a dois minutos e 52 por quilômetro. E manteve isso por quase duas horas!. Para comparação, no treino que fiz em São Paulo, na mesma manhã em que ele derrubou a marca das duas horas na distância da maratona, percorri sete quilômetros a um ritmo de sete minutos e meio por quilômetro. Grosseiramente falando, no tempo em que eu corria um quilômetro, nosso amigo corri dois e meio! (SAIBA MAIS CLICANDO AQUI)

Que fique claro, porém: ele não correu uma maratona, ele não enfrentou competidores, ele não se submeteu às variáveis e incertezas que fazem parte de qualquer evento esportivo. Sua marca, por fabulosa que seja, não será registrada como recorde mundial pela IAAF (a Fifa do atletismo).

O que ele fez foi numa espécie de prova de um teorema: demonstrou que é possível ao homem percorrer em menos de duas horas a distância da maratona. Desde que lhe sejam oferecidas todas as condições ideais.

Foi o que aconteceu na manhã de sábado em Viena. O percurso foi desenhado especialmente para o recorde: uma reta só, com um curvão aberto em cada ponta, para que os retornos pudesse ser feitos com perda mínima de velocidade. O percurso no asfalto, cercado por frondosas árvores, foi repetido quatro vezes e um tanto para inteirar a distância mágica da maratona.

O clima também foi o ideal, em termos de temperatura, umidade do ar e vento. Os organizadores do evento –que teve patrocínio milhardário—escolheram uma janela de dez dias que costumam oferecer as melhores condições climáticas para a prática atmosférica.

A cada dia, desde nove de outubro, analisariam as previsões para os dias seguintes a fim de estabelecer a data ótima para a tentativa. Deu certo de primeira, cravando-se a data azada em 12 de outubro, às 8h15 (3h15 no Brasil).

A partir do dia nove, Kipchoge foi colocado em ritmo especial de alimentação, abastecendo-se basicamente de carboidratos (o chamado carbo loading, na gíria esportiva), além de descanso e hidratação especial –nada que, espera-se, possa vir a ser considerado como elemento dopante.

Treinar ele já não precisava mais, ainda que tenha dado umas saidinhas para esticar os músculos.

Na corrida, ele foi assessorado por um time de 41 coelhos –os marcadores de ritmo–, corredores que se revezaram para garantir que ele ficasse sempre no ritmo calculado para a quebra da marca das duas horas. Além disso, o grupo de atletas era precedido por um carro elétrico que também mantinha o ritmo de 2min50 por quilômetro (que dá em torno de 21 quilômetros por hora, para usar uma medida mais conhecida dos não corredores).

E conseguiu: uma hora, cinquenta e nove minutos, quarenta segundos!

Foi recebido com abraços e beijos pela esposa, Grace, aplaudido pelos três filhos pequenos.

Kipchoge, 34 anos, é o caçula de quatro filhos de uma professora primária, que criou a família sozinha. Começou a carreira esportiva com 16 anos e, aos 18, conquistou seu primeiro título mundial, como júnior, em cross country.

Tornou-se lenda.