”O que acontece no Brasil é um crime e tem um projeto necropolítico para atingir as classes subalternizadas, os negros, os indígenas. A banalização do mal tem a ver com essa tradição fascista à qual eles se vinculam explicitamente. No nazismo ficou claro que havia uma banalização do mal, uma indústria da morte, como existe aqui no Brasil. O mal é tratado como uma norma. É visto como algo desejado por esse governo. E ele se vangloria disso”.

A análise é de Márcio Seligmann-Silva, professor de teoria literária da Unicamp. Para ele, “esse processo de normalização, de banalização é feito dentro de um contexto maior que é o neoliberalismo. Bolsonaro é um braço de um neoliberalismo que tem uma estrutura internacional. É óbvia a relação dele com Trump. O que a gente está vendo agora é a volta do projeto colonial, é um neocolonialismo absurdo. É um projeto de nação para vender o Brasil a preço de banana e dividir com os amigos do Norte e com uma pequena fração da população. Não 1%, mas 0,1%. Os 99,9% uma hora vão ter que reclamar. Isso aqui está virando uma bomba, uma panela de pressão, uma hora vai ter que explodir”.

Na sua visão, “a pandemia é produto do modelo de uma sociedade neoliberal que explora o trabalho e a natureza como se fossem coisas infinitamente exploráveis. Não são infinitamente exploráveis.  Assim como a natureza tem um limite, nossos corpos têm, nossa psiquê tem. Muita gente está pirando. Uma saída e pirar; a outra é ir para a rua protestar. Não sei como. Tem um acumulo de violência muito grande nesse momento que a gente vive”.

Ensaísta e tradutor, Seligmann fala ao TUTAMÉIA a propósito do lançamento de “Sobre o Conceito de História”, de Walter Benjamin, edição crítica que organizou e traduziu com Adalberto Müller. O livro –que traz quatro versões dos manuscritos com suas rasuras– sai agora pela Alameda no momento em que a morte de Benjamin completa 40 anos. Nascido em Berlim em 1892, o filósofo marxista alemão foi perseguido pelo nazismo e escreveu essa obra em fragmentos às vésperas do seu suicídio, quando viu frustrada a sua fuga da Europa sob Hitler.

Benjamin defendia a necessidade de elaboração de uma “teoria da história a partir da qual se possa encarar o fascismo, pensar a história do ponto de vista dos vencidos, reescrever a história do ponto de vista daqueles que sempre foram os esquecidos. São esquecidos em vida, porque são explorados, e são esquecidos depois que morrem, porque não têm lugar na história. É um projeto de escovar a história a contrapelo. É com base nessa história que você consegue ter uma identidade. A memória e a história constituem a tua identidade. Benjamin produz um modelo de pensar crítico histórico que nos ajuda muito a pensar criticamente o que está acontecendo no Brasil e no mundo hoje”, afirma Seligmann.

Ele enfatiza que o filósofo alemão da Escola de Frankfurt desconstrói a ideia de que história é algo linear, ascendente. Classifica esse ponto de vista como o dos vencedores. “Essa história linear é farsa, é mentira. A história verdadeira é catástrofe. O progresso é catástrofe. A revolução não é locomotiva da história. É o freio de emergência. Marx afirma que as revoluções são a locomotiva da história do mundo. Talvez seja o contrário. Talvez seja o acionar do freio de emergência pela humanidade que viaja nesse trem”, lembra o professor da Unicamp ao descrever o pensamento de Benjamin.

Nesta entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), Seligmann faz comparações entre o contexto da escrita de Benjamin com o atual. Enxerga muitas similitudes, como a questão do negacionismo:

“O negacionismo faz parte do projeto genocida.  O genocida mata, assassina e apaga os traços ao mesmo tempo. Os nazistas começaram a destruir os campos de extermínio em 1944 e plantavam floresta de pinheirinho em cima. Assim como o projeto desse governo é acabar com todo o traço da cultura e da existência indígena. É um genocídio e um etnocídio junto. Para não ficar nenhum traço do que aconteceu a partir dos anos 1980 no Brasil –uma coisa muito linda e muito original nossa, que é a etnogênese, grupos indígenas voltando a existir, línguas indígenas voltando a existir. O que a gente está vendo agora é a volta do projeto colonial”.

Nesta conversa, Seligmann fala das influências e das ligações de Freud e Brecht com a obra de Benjamin. Fala de poesia, literatura e do papel do historiador. Lembra que para Benjamin é preciso, por exemplo, olhar as pirâmides para além do monumento: é preciso conhecer quem construiu a obra, a exploração envolvida, o trabalho explorado, a condições sociais. “Todo o monumento de cultura é história da barbárie. É preciso aprender a olhar para a história com sensibilidade para entender o horror da história. É um acúmulo de catástrofes. Se a gente conseguisse olhar tudo com esse olhar… é um olhar empoderador, que não permite que a gente normalize a banalidade do mal. A gente tem que se libertar dessa estrutura que produz essa catástrofe, uma sociedade produz sofrimento, hierarquias, desigualdades”.

Seligmann trata da história. “A história sem sangue é mentira, é construção ideológica, é memória encobridora. Exemplos de luta é que não faltam. O que acontece é que esses modelos são esquecidos. A história do Brasil é uma história de apagamentos muito brutal, muito violenta. Benjamin tem muito a nos ensinar hoje. Ele nos ensina a pensar contra a colonialidade, do ponto de vista decolononial. Porque a gente vive essa radicalidade do projeto colonial novamente. A gente tem que aprender a descolonizar os nossos hábitos nossos modos de pensar. Ele está na bibliografia para a gente construir esse novo modo de pensar que vai nos instrumentalizar para a resistência”