“Estamos vivendo uma catástrofe. As pessoas estão perdendo a paciência, eu também estou perdendo a paciência com essa pandemia, e ninguém mais aguenta e ninguém mais se aguenta. Como psicanalista, lembro que Freud falava de dois princípios básicos, a pulsão de vida e a pulsão de morte, é um dos alicerces da teoria dele. A gente poderia dizer que estamos funcionando a pleno na pulsão de morte, queimando a Amazônia, queimando o Pantanal, matando as pessoas e dizendo que é uma gripe, esse tipo de coisa louca.”

A avaliação é da artista e psicanalista Cecilia Boal, viúva do homem de teatro Augusto Boal e presidente do instituto criado para preservar, divulgar e ampliar a obra do criador do Teatro do Oprimido.

Do Rio de Janeiro, onde mora e trabalha –mesmo durante a pandemia segue atendendo a seus pacientes, ainda que de forma remota–, ela falou ao TUTAMÉIA sobre o momento em que vivemos, o teatro e a cultura, a obra de Boal e os trabalhos de resistência que vem desenvolvendo durante a pandemia (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Sobre Bolsonaro, faz a seguinte avaliação: “A impressão que me dá esse presidente, para além de todas as outras maluquices, as besteiras, é que ele se comporta como um adolescente, um adolescente desses que quebram tudo, estão em ruptura, em crise com o mundo, detesta tudo, tá tudo péssimo, não tô nem aí, desses adolescentes bem malcriados. E as pessoas estão se identificando com essa proposta, como se tivesse uma grande frustração, talvez algo que muita gente estivesse esperando e não aconteceu ou aconteceu pela metade, e o adolescente sai quebrando tudo. Claro que isso é uma leitura muito superficial, porque esse adolescente tem poderes que os adolescentes não têm.”

Em quarentena há seis meses, mantendo muito pouco contato ao vivo com as outras pessoas, ela analisa assim o comportamento dos brasileiros: “As pessoas, agora, estão começando a ficar mais inquietas e mais angustiadas. A maioria das pessoas que atendo no consultório é de classe média. Todos nós temos uma pandemia muito privilegiada, moramos em casas relativamente confortáveis, ninguém está com dificuldades maiores para se alimentar. Essas pessoas estão conseguindo levar adiante seu trabalho. Mas estou achando que, agora, todo mundo, inclusive eu, está começando a ficar absolutamente cheio dessa história porque não sabe quando acaba.  É demasiado! Está sendo demais!

Isso trará consequências para a saúde mental dos brasileiros –além de todas as outras, econômicas, políticas e sociais: “Se a pandemia continuar por muito tempo, com certeza vai aumentar o número de doenças da mente, porque está tendo muito problema dentro das casas por causa do confinamento. Os pais não aguentam mais os filhos, os maridos e as mulheres começam a brigar e não se aguentam. Você não sabe quando acaba”.

Contra o desespero, um dos remédios é o trabalho, a ação. Como a que engloba o projeto Feira de Opinião na Pandemia, uma série de vídeos em que artistas convidados respondem, cada um a seu modo, com discurso, encenação ou videoclipe, à pergunta “O que pensa você do Brasil de hoje?” (ao lado, cartum de Otavio criado para o evento)

Sobre o trabalho, que já conta com treze episódios, Cecilia Boal diz: “O que a mim me salvou foi a Feira de Opinião, que inventei na pandemia como uma forma de sobrevivência, eu acho. Não acredito em coisas esotéricas, mas, à medida que o tempo vai passando, parece que o espírito de Boal está tomando conta de mim. Boal era uma pessoa que encontrava resposta para as situações mais horríveis. E eu acho que encontrei algumas respostas e estimulo algumas pessoas a entrar na minha.”

Trata-se, também, de uma ação de resistência, de enfrentamento do projeto do governo de ataque às artes e à cultura em geral. Como, aliás, têm feito os artistas brasileiros, em sua maioria, na avaliação dela:

“Tenho impressão de que os artistas estão todos extremamente ativos e se manifestando muito. Talvez na época do Boal não fosse tanto assim. A grande maioria, os cantores, os atores, as atrizes se manifestando muito, tomando muito partido, dando opinião e se manifestando muito em relação a tudo o que está acontecendo, em relação à questão ambiental, mas também à questão social, à questão política. Acho que nunca vi a classe teatral, a classe artística se manifestando tanto. Você vê os cineastas, os compositores, os grandes nomes. Estão falando sem medo o que eles acham. E eu acho que eles todos têm razão, porque o país está sendo destruído. Ninguém pode ficar indiferente porque é muitíssimo grave o que está acontecendo. A proposta realmente é uma proposta mortífera. Eu estou achando essa época muito pior do que a época da ditadura, que a gente viveu. A destruição está sendo monumental. O tipo de coisa que você não sabe como é que vai reconstruir o país depois disso. A impressão que dá é que os hunos, o Átila, estão passando e estão arrasando o país todo.”

Talvez essa expressão, que ela chama de maravilhoso engajamento do pessoal de teatro, de cinema, de música”, seja sinal de que pode haver futuro, apesar de tudo: “A América Latina tem de fazer um caminho muito longo para se libertar. Não vou ver, mas tenho netos, que eu adoro, eu gostaria que eles pudessem uma América Latina livre, realmente. Não acho que vai ser fácil. A gente vai ter de aprender algumas coisas, que não vou ousar dizer quais, mas a gente vai ter de aprender.”