A direção que o governo Bolsonaro dá à economia brasileira vai na contramão do que está sendo feito em todo o mundo. Longe de produzir progresso, vai gerar mais desigualdade e deixar o país sem recursos para enfrentar a crise que se avizinha e que poderá ser maior e mais profunda do que a que o mundo viveu em 2008.

O alerta é do professor Luiz Gonzaga Belluzzo, intelectual multipremiado e listado como um dos cem maiores economistas heterodoxos do século 20 no “Biographical Dictionary of Dissenting Economists”, em entrevista ao TUTAMÉIA, em que também comenta seu novo livro, “A Escassez na Abundância Capitalista, escrito em parceria com Gabriel Galípolo.

“Fazer uma política neoliberal significa entregar a rapadura, sem dúvida. Eles dizem que vão vender a Eletrobrás, desnacionalizar os bancos públicos. Tudo na contramão, muito da contramão, do que os chineses, de uma maneira muito bem-sucedida, estão fazendo.”

O pior é que a economia brasileira, afirma Belluzzo, ainda tem condições de se proteger. Condições que são minadas pela política de Bolsonaro: “Nós ainda temos, nesse mundo de moedas desiguais, um grau de liberdade que nos permitiria fazer um programa de investimentos públicos para melhorar a vida das pessoas. Mas não, eles dizem que não podem fazer isso, na contramão do que está acontecendo no mundo.”

E o que está acontecendo no mundo, afirma o professor, é um entendimento de que novos problemas se avizinham.

“Há todas condições para um novo crash. A riqueza financeira foi inchada de tal maneira que as medidas hoje tomadas até hoje não dão mais resultado. O que foi feito é como dizer para sujeito que tem cirrose hepática beber mais para curar sua cirrose. O fígado vai estourar.”

Economistas e condutores de política econômica “estão notando claramente que o mundo pode a qualquer momento sofrer um novo percalço, como foi a crise de 2008. E a solução da época, a reação dos bancos centrais no sentido de impedir que houvesse um colapso dos preços dos ativos, já não é mais possível. O presidente do Banco Central Europeu já reconheceu: com a política monetária não dá mais”.

Por isso, ressalta Belluzzo, Estados Unidos e Europa se voltam para ampliar gastos públicos: “É o que estão propondo agora, a criação de títulos especiais para infraestrutura que seriam descontados pelo Banco Central Europeu.”

As políticas defendidas pelo governo Bolsonaro e por Paulo Guedes, no entender do fundador da Facamp, seguem exatamente o caminho inverso: “A reforma da previdência não vai funcionar. Não vai funcionar porque ela é retrógrada, ela é antiga, ela está em cima de um mercado de trabalho que não existe mais. Eles estão olhando para trás. O que é preciso é remontar as instituições, fazer um programa de obras públicas, em que o Estado garanta a qualidade do financiamento. Acreditar que o setor privado cai fazer isso é uma piada de péssimo gosto. Sem investimento público não vamos sair da crise”.

Trata-se, evidentemente, de uma questão política: “O debate econômico, estritamente por ele mesmo, simplesmente informa. Pode criar sugestões, mas não decide. É importante que nós tenhamos uma frente democrática, que esteja empenhada em olhar para a sociedade e ver os problemas. Há um problema de desigualdade crescente, desemprego, miséria. É isso que nós temos de enfrentar”.

Ele lembra os tempos em que atuou ao lado de Ulysses Guimarães: “É preciso que os componentes dessa força, os que participam dessa frente ou tenham desejo de aderir a ela, tenham generosidade de abrir mão de suas peculiaridades, de seus particularismos. Porque esse objetivo é muito maior, é um objetivo da sociedade brasileira. O doutor Ulysses era assim. Você não imagina como ele era tolerante. A intolerância que ele tinha com a ditadura era inversamente proporcional à tolerância que ele tinha com as pessoas que participavam do velho MDB”.

E aponta o legado de Ulysses: “Eu aprendi muito com ele. Aprendi com ele essa ideia de que a gente precisa ter um objetivo principal e subordinar tudo a ele”.

LIVRO DE PROVOCAÇÕES

A entrevista (veja no vídeo no alto da página) foi marcada por referências ao livro que Belluzzo e Galípolo estão lançando: “É um livro de provocação, para colocar em dúvida as certezas que estão por aí. A provocação é que induz ao conhecimento”.

Ficam, a seguir, algumas das provocações apresentadas em “A Escassez na Abundância Capitalista”:

“A economia compartilhada é uma fraude, recentemente escancarada pelas greves dos motoristas do Uber ou pela recente formação do Sindicato Internacional de Entregadores de fast-food, massacrados em seus direitos e seus rendimentos pelas manobras do “aplicativo”.

Agora em escombros, as classes médias, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa, ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades cruéis do declínio social e econômico. A individualização do fracasso já não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela desordem do sistema social.

Na outra ponta do espectro econômico, a rápida expansão dos rendimentos derivados da propriedade de ativos tangíveis e intangíveis demonstra que o avanço do patrimonialismo capitalista não é uma deformação desse regime de acumulação e apropriação da renda e da riqueza, senão a expressão necessária de sua dinâmica contraditória.

A acumulação de capital propriedade assume a sua forma mais avançada e abstrata no capital fictício. A acumulação de mais dinheiro mediante o uso do dinheiro para capturar mais valor sob a forma monetária culmina nas formas “desenvolvidas” do capital fixo sob a forma da automação contida nas potencialidades do sistema de máquinas, do capital a juros, do dinheiro de crédito e do capital fictício. Nessas formas, o capital realiza o seu conceito de valor que se valoriza e ensaia acrescentar seu valor com a desvalorização da mercadoria força de trabalho. O circuito D-M-D’ avança suas tendências para se converter em D-D’.

A financeirização não é uma deformação do capitalismo, mas um “aperfeiçoamento” de sua natureza. Aperfeiçoamento que exaspera o seu movimento contraditório: na incessante busca da “perfeição”, ou seja, a acumulação de dinheiro a partir do dinheiro, o regime do capital excita as esperanças do capital e destrói as realidades dos submetidos à sua lógica implacável.

Dissipam-se as fronteiras entre a economia real, aquela “produtiva” e a economia dita “improdutiva” e parasitária da finança. A inteligência artificial, a internet das coisas, a robotização são incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade das formas financeiras, tornando visível e quase palpável, o processo que Karl Marx chamou de abstração real. É um equívoco investigar esse processo de abstração real como a oposição entre duas formas do capital: 1) o capital produtivo em que homens e máquinas se combinam para a produção de mais valor; e 2) o capital “improdutivo” que não produz mercadorias, mas gera rendimentos “fictícios” para seus proprietários. Cabe esclarecer que, na construção de O Capital, essas formas não são opostas, senão contraditórias, isto é, desenvolvem-se como dimensões do processo de valorização que subordina a produção dos meios materiais para a satisfação das necessidades ao império da acumulação de riqueza abstrata.