“Afirmar que eu ganharia, eu jamais faria isso. Mas foi tirada de mim a grande chance de ter lutado por aquela medalha de ouro. Até porque mesmo depois de o fato ter acontecido, que foi no quilômetro 35, eu ainda permaneci na liderança por quase quatro quilômetros, com todos os problemas. Eu acho que, numa situação normal, certamente o histórico seria completamente diferente. Talvez o cara poderia ter se aproximado, mas já lá dentro do estádio… E outra: quando chega no final da prova, você cresce, você vira um leão. Acredito que teria total chances de brigar por aquela vitória.”

Assim o corredor Vanderlei Cordeiro de Lima analisa o que poderia ter acontecido na maratona olímpica dos Jogos de Atenas-2004 não tivesse sido ele agredido e derrubado ao chão por um desvairado religioso irlandês na altura do quilômetro 35 da prova, numa cena que correu o mundo e ainda hoje é alvo de debates no mundo do atletismo. Em entrevista ao TUTAMÉIA, Vanderlei fala sobre sua carreira, analisa o mundo do esporte, conta em detalhes algumas provas marcantes –como sua primeira maratona, na França, e a conquista da sonhada medalha olímpica (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Filho de retirantes nordestinos que se fixaram no interior do Paraná em busca de melhores condições de vida e de trabalho, Vanderlei foi o caçula de sete irmãos. Como todos os outros, assim que teve forças para manejar uma enxada, passou a ajudar na roça e enfrentou com a família o trabalho como boia-fria.

No início da adolescência, descobriu o atletismo. Começou a se destacar na cidade e na região, cresceu, teve vitórias, entrou no radar de olheiros de São Paulo:

“No final de 1987, recebi uma proposta para ir para a Eletropaulo, em São Paulo. Minha ida não era nem pela questão financeira, mas sim pela oportunidade de estar num grande centro, o que poderia mudar minha vida como atleta. Nesse momento eu já estava me firmando como atleta e, na verdade, era isso o que eu queria, isso que eu ia lutar para chegar. Essa foi a primeira alavancada. E tinha aquele sonho de um dia ser atleta olímpico.”

Ao lado do sonho, havia o desconhecido: “Sair do Paraná foi muito difícil. Contrariar meu pai, minha mãe, eles não queriam que fosse para São Paulo, eu era menor ainda. Depois que eles viram que eu iria mesmo, então começaram a me apoiar. Eu tive de me emancipar e encarar a vida. Eu não sabia o que ia encarar em São Paulo. Fui nas escuras, não tinha noção do que era São Paulo”.

O que se tratava era de enfrentar aquilo ou ficar na roça: “Foi muita ousadia, eu nunca tive medo de arriscar. O que eu não podia era voltar para trás, dar um passo para trás, porque tudo o que era para trás, para mim era muito mais difícil. Então eu tinha de encarar a realidade do meu dia a dia. E assim sempre foi”.

Encarando a realidade e os treinamentos, ele foi progredindo na carreira. Destacou-se na São Silvestre, ganhou títulos em diversas distâncias, cravou recordes. Apoiado por clube e patrocinadores, conseguia limitar o número de provas em que participava e planejar a carreira.

Mas o ingresso no mundo da maratona veio sem planejamento. Havia sido contratado como coelho, o marcador de ritmo para os atletas de ponta da prova. Num dia de forte chuva, em Reims, na França, cumpriu seu trabalho até a metade da maratona e resolveu seguir por conta. Estava se sentindo bem, não via ninguém chegando perto, e foi tocando em frente.

Ao TUTAMÉIA, Vanderlei conta tudo em detalhes, mas o resumo é este: venceu. “Ganhei com duas horas, onze minutos e seis segundos. Para mim, aquilo ali foi, nossa, estava feliz da vida, até porque eu não só tinha recebido meu dinheiro de participação como coelho, mas eu tinha ganhado uma premiação razoável como campeão da prova. Eu nunca tinha nem treinado para maratona. Foi inusitado!”

Era o ano de 1994. Dois ouros pan-americanos e duas participações em maratonas olímpicas depois (Atlanta-1996 e Sydney-2000), ele começa o treinamento para os Jogos de Atenas-2004.

Começo desastroso: em janeiro, contrariando orientações do treinador, passeia de moto pelo interior do Paraná. Sofre um acidente, se machuca feio, vê se esfumaçar o sonho olímpico que estava com ele desde a adolescência, quando viu na TV de um vizinho a vitória de Joaquim Cruz nos Jogos de Los Angeles.

Que nada! Mergulha no tratamento, na fisioterapia, nos treinamentos. Em abril, conquista o índice olímpico ao vencer a maratona de Hamburgo e aí tudo virou Atenas: “Quando eu estava treinando, eu mentalizava um filme na minha cabeça como se eu estivesse correndo a maratona em Atenas. Eu viajava naquele sonho. E era treino faca na caveira! Não era treino de moleza, não. Essa questão emocional foi determinante para mim”.

É determinante para qualquer um, e todos precisam se preocupar com esse aspecto, ensina o ganhador da medalha Barão de Coubertin, que lhe foi dada por causa de seu espírito esportivo na Grécia. “Tem uma frase minha que diz tudo: Correr com as pernas, aguentar com o coração e vencer com a cabeça. Essa frase diz tudo o que foi a minha vida, porque o atleta fisicamente pode ser bom, mas, se ele não tiver uma boa cabeça para digerir a prova em determinados momentos, ele acaba fracassando. Eu trabalhei muito isso aí por toda a minha vida”, diz Vanderlei Cordeiro de Lima.

Nesta pandemia, Vanderlei acabou contaminado pelo coronavírus, mas conseguiu se recuperar bem –apesar de ainda sofrer alguns problemas menores. Durante a entrevista, mandou seu abraço e solidariedade aos familiares e amigos das vítimas da covid e se somou à homenagem aos profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à doença.

Aos 52 anos, não participa de maratonas, mas não deixa de trabalhar –“Atleta não tem aposentadoria’, lembra o corredor, que atua em eventos, faz palestras e comanda o instituto de leva seu nome e que procura oferecer condições de acesso ao esporte e à educação para jovens de baixa renda.

De certa forma, tenta passar a outros o que foi o esporte na sua vida, como diz ao TUTAMÉIA:

“O esporte foi a maior ferramenta de transformação da minha vida, em todos os sentidos. Aliado à educação que eu recebi dentro da minha casa, os valores primordiais que eu recebi de meu pai e da minha mãe, também os valores que eu aprendi dentro do esporte: resiliência, respeito, isso a gente adquire praticando esporte. O esporte é a maior ferramenta de transformação do ser humano. O esporte e a educação têm de estar juntos, têm de estar atrelados, lá na base, porque você vai formar não só um esportista, você vai formar um grande cidadão.”