“Desde o golpe contra uma mulher presidente da República, a gente foi naturalizando a violência na política. Os três poderes que constituem a República estão se esfacelando. Ou a gente é bobo que não está vendo o que acontece, ou a gente toma uma decisão de participar socialmente, publicamente do debate e esclarecer que nós precisamos refundar a República brasileira. A gente não tem que ficar só reclamando”.

É o que afirma Ailton Krenak ao TUTAMÉIA. Diz ele:

“Lá no Chile, tem uma mulher indígena dirigindo os debates na assembleia plural que convoca uma constituição plurinacional. Eles estão transpondo as fronteiras no estado colonial. Aqui no Brasil, a gente está confortavelmente enfiado num estado colonial, repetindo o be-a-bá, inclusive o be-a-bá de subordinação do interesse comum ao interesse privado. O que manda no Brasil é o interesse privado. Se a gente tivesse um debate verdadeiro sobre soberania, o capital tinha que ser posto sob controle. Ele não pode vandalizar a vida dos brasileiros desse jeito”.

Jornalista, escritor, poeta, ambientalista, Krenak é uma das principais lideranças indígenas do país. Autor, entre outros de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” e “O Amanhã Não está à Venda”, ele fala ao TUTAMÉIA em 1° de setembro de 2021, quando o STF retomava o debate para deliberação sobre a demarcação de terras indígenas.

Na conversa, trata da questão do chamado “marco temporal”, dos interesses econômicos das grandes empresas de mineração e do agronegócio, das contradições entre os poderosos, da organização da luta indígena, das conquistas históricas e dos retrocessos em curso (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“O marco temporal é um artifício para impedir que as terras indígenas sejam demarcadas. O marco temporal é uma negociação sobre um patrimônio comum dos brasileiros. As terras dos povos indígenas são da União. Parece que ninguém está entendendo que está havendo um assalto à infraestrutura natural da nação. Se os particulares conseguirem ir para a briga, eles vão se apropriar de milhões de hectares de terra que são da união. Não estão tomando terra dos índios. Estão tomando terra que é patrimônio público”, declara.

“Esse governo vai dar um golpe de privatizar as terras indígenas se ele conseguir levar à frente esse sonho ruralista de impor o marco temporal como substituto do que está escrito na Constituição. Avilta a Constituição”.

MÃO GRANDE DO CAPITAL

Krenak observa que a atual conjuntura deixou expostos interesses que antes estavam ocultos.

“Todo mundo sabe que o grande capital quer mesmo decidir contra o princípio que está na Constituição, quer o subsolo das terras indígenas explorado por particulares. É a mão grande do capital achando que não tem momento mais oportuno para eles para assaltar a Amazônia do que agora. 93% das atividades de mineração, de garimpo acontecem na Amazônia. As pessoas estão se distraindo com os Jogos Olímpicos no Japão, mas a parada está sendo resolvida na Amazônia”.

Ao TUTAMÉIA, Krenak ressalta que começam a aparecer fissuras no setor do agronegócio, como ficou evidente no recente manifesto de uma parcela do setor em defesa da democracia e do ambiente.

“Significa que esses caras estão começando a entender que eles podem levar um prejuízo enorme, que podem ser usados para fazer essa invasão e depois serem largados no meio do caminho, feito otários. Eles vão parar de pagar aquela propaganda da Globo que diz que o agro é pop. Eles vão falar: ‘Peraí. Estamos fazendo vaquinha para pagar aquela propaganda, só que tem uma parte de nós que vai levar ferro depois”.

Krenak lembra dos debates que resultaram na Constituição de 1988, onde ele foi protagonista na questão indígena. E compara que as mobilizações de agora:

“Na Assembleia Constituinte, havia uma ampla mobilização do povo brasileiro. Eu só pude falar no plenário porque tinha 120 mil assinaturas de brasileiros me apoiando. Agora, os indígenas estão em Brasília sozinhos, por conta própria, levando gás lacrimogênio e soco na cara de um governo que deveria ser confrontado pelo povo brasileiro. É uma vergonha ter um acampamento só de indígenas. Isso é apartheid”.

E afirma:

“Se nós estamos naturalizando a morte de mais de 500 mil pessoas, é porque estamos vivendo numa comunidade totalmente enlouquecida”.