“O movimento negro cresce a cada dia. E, se me perguntarem as razões disso, entre as várias razões, eu ficaria com as cotas das universidades. Sem dúvida, há ameaças. Temo que, estando em tempo de uma reavaliação das cotas, temo que queiram mexer. Porque a postura do executivo federal é totalmente contrária a nós. Temo que cortem ainda mais alguns dos direitos que essa administração já retirou dos povos remanescentes dos quilombos. Tudo a gente pode esperar dessa administração! Gente! É terrível! É terrível! O menosprezo a maneira de tratar o povo. É preciso reagir!”

A análise e o alerta são de Carlos Moura, liderança histórica do movimento negro no país, ao TUTAMÉIA. Fundador e primeiro presidente da Fundação Cultural Palmares, ele também foi líder da Comissão Brasileira Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Na Bahia, no início deste mês de novembro, Moura foi o homenageado da primeira edição do Prêmio pelo Mérito da Igualdade Racial, conferido pelo governo estadual (veja o final deste texto). Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, ele lembra da ascensão do movimento negro no bojo das lutas pela redemocratização do país e trata do racismo estrutural e da situação da atualidade (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Vivemos momentos de tristeza. A covid, associada à administração do executivo federal, nos dá muita tristeza. Seiscentos mil mortos pela incúria, pelo desapreço à pessoa, pela desorganização administrativa. Também muitos brasileiros e brasileiras passando fome, na miséria”, diz Moura.

Ele segue:

“Mas se é um momento de tristeza é também um de esperança. Esperança que nos conduz à resistência. Esperança que nos dá a certeza de que superaremos esse momento e que os bons ventos –da democracia, da liberdade, da superação do racismo, do preconceito, das discriminações –chegarão para o bem comum de todos nós”.

Abordando as ações do movimento negro, ele declara:

“O movimento social tem as suas facetas. Pode ter uma unidade, guardadas as características de cada um. Nós temos no movimento negro várias linhas de ação. Embora haja uma linha de pensamento única –africanidade, liberdade, paz, combate e superação do racismo-,- tenho a certeza de que ele cresce a cada dia, a cada momento”.

Moura destaca o papel vital das cotas nas universidades, política que poderá sofrer revisão no ano que vem, quando a legislação completa dez anos.

“Nossos moços e moças entraram para a universidade. As universidades, sobretudo as públicas, enegreceram. Com isso, mostrando a realidade do país –nós somos a metade da população– e mostrando que, na via de igualdade de oportunidade, aquele despossuído ele emerge”, diz.

Moura destaca outras políticas conquistadas pelo movimento:

“Estamos num caminho bastante ligeiro, não como desejássemos, mas conseguimos a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, que ficou dez anos na Câmara Federal, a lei que determina o ensino da história da África, a Secretaria da Igualdade Racial, coordenações de Igualdade Racial em muitos estados e municípios”.

Abaixo publicamos texto elaborado por Debora Moura, filha de Carlos Moura, sobre a premiação que o pai recebeu:

UM VERDADEIRO HERÓI PRETO

texto de Débora Moura

O Teatro Castro Alves era um mar de pretos. Cadeira sim, cadeira não de diversos cabelos e penteados, vestimentas africanas, códigos da minha gente. Era uma noite pra celebrar.

O Bando de Teatro Olodum lembrou de onde viemos e o que fizeram antes de nós #Zumbi, #Dandara e outros líderes da luta negra no Brasil. Um espetáculo pra nos saudar, nos reverenciar e reverenciar os ancestrais. Lembraram dos navios negreiros aos dias de hoje, lutas e conquistas do nosso povo.

Meu pai subiu ao palco altivo como sempre e pouco conseguia disfarçar a vaidade da homenagem: 1º Prêmio Mérito da Igualdade Racial da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo da Bahia – “Com racismo, não há democracia” para o primeiro presidente da Fundação Cultural Palmares, meu pai Carlos Moura.

Eu me preocupava com a escada que levava ao palco enquanto ele subia, ficando grande, gigante, maior que o próprio teatro. Pegou o texto que preparara e discursou com a força de um homem da lei, um dominador da oratória. Lembrei das histórias que contavam de que seu pai biológico, que ele nunca conhecera, ia escondido à Praça Araribóia em Niterói pra ouvir seus discursos de líder do DCE da UFF, aspirante à política social e democrática.

As palavras que eu já sabia quase de cor foram saindo de sua boca embaixo da máscara, amplificadas pelo microfone, num êxtase da plateia. Citava grandes líderes do movimento negro da Bahia, a criação da Palmares, agradecia aos idealizadores do prêmio. Falava da nossa família, agradecia minha mãe Gloria e terminava numa mensagem de esperança pro Brasil e pra população negra. “Nosso encontro de hoje e de sempre significa que o movimento negro e seus aliados estão permanentemente juntos, de novembro a novembro”.

Aí eu vi, mais que nunca, o líder. Pediu licença e falou outros três minutos, além dos três que lhe tinham concedido. Falou de um mundo novo, de paz, sem desigualdade. Falou do sonho e da certeza de que nós já começamos a construir o futuro e a viver esse sonho. Se disse iluminado por aquele momento, sentindo o pulsar dos corações ali presentes.

Pra nossa família, o prêmio foi um reconhecimento inesquecível à contribuição de meu pai, à sua luta e à coerência de sua trajetória.

Antes dos aplausos finais, ele falou no resgate dos valores da negritude. Desceu do palco ovacionado. E eu embaixo, ainda preocupada com os degraus da escada, me enchia de orgulho. Meu pai era naquele momento um verdadeiro herói preto.

Terminamos ao som do Ilê, cantando e dançando em alegria e celebração. Certos da necessidade de nos conectarmos cada vez mais com nossa história e nossas vivências.