No Brasil de hoje, no tempo presente, “a direita sequestrou o discurso do futuro, da esperança, do progresso, da melhoria e da transformação benéfica”. E, no que parece ser uma inversão dos valores históricos, a esquerda apresenta “dificuldade de falar de futuro”.

Essa é uma das conclusões de pesquisa realizado pelo professor João Paulo Pimenta, do departamento de História da Universidade de São Paulo. Feito em parceria com Sheila Virgínia Castro, o trabalho analisou as declarações de voto dos deputados federais na sessão da Câmara Federal de 17 de abril de 2016, a primeira do processo que culminou com a derrubada da presidenta Dilma Rousseff.

“Naquela sessão se revelou algo que está esparramado em nosso contexto atual, no Brasil de hoje”, disse Pimenta em entrevista ao TUTAMÉIA (assista à integra no vídeo no alto da página).

Para tentar entender o que ocorreu e que lições tirar dali, os pesquisadores decuparam os 551 discursos daquele dia. “Contamos as referências a personagens, referências a período, usos de personagens, uso de determinados conceitos indicativos de passado, presente e futuro. Classificamos, colocamos em tabelas e analisamos.”

Fizeram isso, explica o professor, por causa de sua avaliação de que “uma parte do que ocorre hoje, neste Brasil de 2019, uma parte disso pode ser entendida nessa perspectiva: uma disputa entre formas de ver o passado formas de ver o futuro”.

De fato, na votação, constataram os pesquisadores, “houve uma distribuição desigual nas referências ao passado e ao futuro”. Diferentemente do esperado, porém, diz Pimenta, “em linhas gerais, naquela sessão, os deputados que votaram pelo sim (impeachment) falaram muito mais de futuro do que os deputados que voltaram não, que falaram mais de passado”.

Segundo ele, “é mais ou menos normal que grupos de esquerda estejam mais preocupados com o passado do que grupos de direita, grupos conservadores. Estes gostam do passado, mas falam menos do passado. O nos surpreendeu foi o que nos pareceu uma dificuldade dos votantes do não, majoritariamente do campo progressistas, a dificuldade de falar de futuro”.

As razões da surpresa, no dizer de Pimenta: “O futuro, de modo geral, é um patrimônio da esquerda. Historicamente os grupos de esquerda, por mais diferentes que sejam, indivíduos de esquerda são aqueles –essa é uma definição de esquerda—são aqueles que não têm receio de projetar um mundo melhor; portanto, de mobilizar ferramentas de transformação no seu presente. Porque acreditam sempre que o mundo pode ser outro. As esquerdas são progressistas por natureza, independentemente das formas de atingir esse futuro, das ferramentas a serem usadas no presente. Mas esquerda tem sempre de falar de futuro. E ali, com essa avaliação, nos pareceu evidente que a esquerda estava com dificuldade de falar no futuro. O futuro foi muito mais mobilizado pelo campo conservador”.

Em resumo: “Metaforicamente, foi o sequestro de uma ideia, de uma atitude intelectual”.

Tratou-se, acreditam, de uma armadilha -palavra utilizada no subtítulo do artigo de Pimenta e Castro, que se chama “Usos da história no golpe de 2016, uma armadilha dos tempos históricos no Brasil atual”.

Originalmente, o tema foi objeto de uma das aulas em curso realizado na História da USP no ano passado em resposta à tentativa do então ministro da Educação de atacar a autonomia universitária. Conforme noticiado na época, o Ministério da Educação anunciou que iria acionar a Advocacia-Geral da União, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal contra a realização, na Universidade de Brasília, do curso “O Golpe de 2016 e o futuro da Democracia no Brasil”, idealizado pelo professor Luís Felipe Miguel.

Houve protestos no Brasil todo, lembra Pimenta, e mais de quarenta universidades em todo o país realizaram cursos com o mesmo título. Na USP, o evento foi organizado no departamento de História, por iniciativa dos professores Pedro Puntoni e Everaldo Andrade. Eles agora estão concluindo um livro que reúne, em forma de artigos, as aulas que integraram o curso de então.

No livro, a aula criada por Pimenta e por Castro, que se chamava “Usos da História no Golpe de 2016”, ganhou o subtítulo que usa a palavra armadilha.

A armadilha, explica o professor na entrevista ao TUTAMÉIA, é que a direita conseguiu criar uma ideia  “em muitos brasileiros, em milhões de brasileiros, de que os governos do PT não foram uma conjuntura, mas uma estrutura, isto é: [a ideia de que que] o Brasil sempre foi petista”.

Portanto, de acordo com esse discurso, com essa perspectiva, “para melhorar as mazelas do país é necessário romper com o PT. Isso explica, no nosso entender, a emergência de tantos jovens de direita, reacionários, fascistas, que deram apoio decisivo a esse golpe, ao governo Temer e, agora, ao governo Bolsonaro”, diz Pimenta.

CAMPANHA ELEITORAL

Isso porque esse “sequestro do futuro” também foi realizado durante a campanha eleitoral?, perguntamos ao professor. A esquerda errou em ficar batendo na lembrança dos tempos em que Lula foi presidente? O slogan “o Brasil feliz de novo” foi um erro?

Ele diz:
“Se Lula tivesse concorrido, o peso desses usos do passado e do futuro seria outro. O que estou analisando aqui não é uma condição estanque da história do Brasil. É uma história que se faz pela própria história, pelas pessoas que integram essa história. Se Lula tivesse sido candidato, se ele tivesse sido eleito, ou mesmo se ele não tivesse sido eleito, essa história aqui, que nós analisamos, ela teria sido diferente. Não sabemos como ela seria, mas, certamente, teria algo de diferente aí.”

“Analisando agora” –continua Pimenta—“parece mais ou menos claro que, como essa sessão foi antes da campanha eleitoral, dava para ter entendido algumas coisas sobre essa dificuldade da esquerda de falar do futuro, um futuro que estava sendo sequestrado pela direita”.

Para exemplificar, ele cita algumas das quantificações realizadas com base nas declarações de voto:

“A palavra “ESPERANÇA”, sabe quantas vezes pareceu nos discursos dos votantes no Sim, no impeachment? A palavra esperança, as pessoas gostam de ouvir essa palavra, é uma palavra bonita, é uma palavra simpática, que te move, que te dá forças… Pois os votantes do “sim” falaram nela em 61 discursos. E sabe os votantes do “Não”, quantas vezes falaram? Quatro discursos! Vejam a assimetria!”

“E futuro? Uma palavrinha que pode dizer muita coisa, também é uma palavra muito positiva, as pessoas pensam o tempo todo “o futuro vai ser melhor”. Pois os votantes do “Sim” falaram 45 vezes em futuro, e os votantes do “Não” falaram duas vezes em futuro. Duas vezes!”

Pimenta segue dando exemplos da discrepância: a direita falou 15 vezes em “mudanças”, a esquerda, uma vez!. “Desenvolvimento do Brasil”, assim, um conceito bem geral, foi usado dez vezes no discurso da direita, duas vezes nas declarações de quem votou contra o impeachment. E “crescimento econômico, crescimento social”? Dez vezes nos discursos dos golpistas, nenhuma nas declarações de voto dos democratas.

Ou seja, afirma Pimenta, “quem, no nosso entendimento, estava realmente interessado no crescimento do Brasil, no desenvolvimento do país, não falou nisso”

O que leva à pergunta, feita por ele mesmo: “Será que isso não tem alguma coisa a ver com os resultados eleitorais, uma vez que o Lula foi impedido de concorrer?”

Para virar esse jogo, afirma ele, “a esquerda precisa recuperar o discurso do futuro, que trocou de mãos, para que haja uma saída política para este país”.

Como recuperar isso?, perguntamos ao professor, que responde:

“Se, historicamente, a esquerda tem como um de seus atributos principais projetar o futuro e valorizar as lições do passado, se isso é comum a todos os grupos que podem dignamente ser chamados de esquerda, isso é comum a todos os grupos que atuam hoje no país. Isso só reforça a ideia da necessidade de que esses grupos, essas esquerdas, se unam. O que há de comum em todos eles, dentre outras coisas, é uma brutal necessidade de recuperar não apenas o discurso, mas a prática do futuro. O futuro precisa ser reconquistado com base numa diminuição de diferenças em prol de uma unificação, porque esse é um denominador comum a todo mundo que quiser se chamar de esquerda”.

Diz ainda João Paulo Pimenta: “Se nós precisamos reconquistar o futuro, então é preciso imaginar esse futuro. E esse é um combate não apenas econômico, não apenas político, mas é um combate também cultural. Nessa tarefa, o passado tem de ser um aliado, na tarefa de imaginar o futuro. Porque sem imaginação não existe realidade”.

E convida, na sua mensagem final na entrevista ao TUTAMÉIA: “Estudemos, pensemos, discutamos, e imaginemos, porque sem isso realmente não nos resta outra alternativa senão aceitar os falsos triunfos da história. É essa ilusão que estão querendo nos vender, a de que não há outra alternativa. Temos que construí-la”.