“A maioria não é fascista. Não é um vírus, não nasceu uma geração de pessoas enlouquecidas, embora exista um grupo pequeno de autênticos facínoras. É erro exagerar as coisas e dizer que são todos fascistas. É falta de sangue frio nesta hora”.

É o que afirma o psicanalista Christian Dunker, ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima) na qual analisa os comportamentos da sociedade nesse momento dramático da vida nacional. Professor de psicanálise e psicopatologia na USP, ele é autor de “Mal-Estar, Sofrimento e Sintonia” (Boitempo, 2015).

Na entrevista, ele defende que é preciso “mudar o ódio como afeto fundamental. Basta de ódio! O ódio cansa. O ódio deixa as pessoas vazias, enfraquecidas. Talvez a gente precise agora de coragem. A gente precisa de coragem, de coragem miúda. Coragem de poder discordar. A coragem é, no fundo, a coragem de dizer o que você está pensando mesmo. Dar-se voz. Dizer: ‘Eu não concordo com isso. Eu não sou fascista. Eu não sou racista’. Escute essa voz em você mesmo. Isso é por onde é a coisa vai começar a se transformar”.

Dunker faz parte do movimento de psicanalistas pela democracia, que dá palestras, produz vídeos, dá assistência. Ele relata que, nos últimos dias, recebeu muitos convites para falar com grupos que temem a vitória de Jair Bolsonaro e querem agir, fazer alguma coisa para evitar que o país tome o pior caminho. “Há sentimento e testemunhos de que as pessoas estão sofrendo já. Estão com medo, intimidadas e temem que isso aumente”, diz.

E aí entra a coragem. “A coragem é um afeto ligado ao risco. Para a psicanalise, o risco maior é a gente se autorizar ao desejo, a gente agir contrariamente às coisas que fazem a gente negar o desejo, inclusive a sexualidade”, ressalta.

“Quando se vê um candidato falando mal da homossexualidade, xingando as mulheres como sujas, devassas, um discurso de que o sexual é perigoso, um psicanalista escuta e diz: ‘Aí não pode ter uma coisa interessante’. Não dá. É uma coisa preconceituosa e o preconceito é sempre com o outro, para se maltratar, para se atacar, para sufocar fantasias que não estão bem colocadas”.

CAVALO DE PAU E LÓGICA DE CONDOMÍNIO

Dunker fala da lógica de condomínio que passou a preponderar no Brasil a partir dos anos 1970. Em 2013, diz, essa lógica começou a ruir. Mas logo veio a neutralização pelo ódio como afeto fundamental. Isso desgovernou o país. “Barbarizamos. A palavra se degradou. É tácito que a gente não precisa mais escutar o outro”.

E lembra:

“Minha vó e meu pai viveram a ascensão do nazismo. Meu avô morreu lutando na Rússia. Eu cresci ouvindo histórias narrando o que a gente está vendo acontecer”.

Avaliando as falas de Bolsonaro e apoiadores, ele afirma:

“Há um subtexto que a autoridade transmite que é assim: Maiorias! Podem bater! Aí o chefe da fábrica oprime o funcionário, o homem vai para cima da mulher, o branco vai pra cima do negro, aquele que está em desvantagem perde o trabalho”.

E como aconteceu esse cavalo de pau na sociedade brasileira? “Houve uma descontinuidade institucional para estabelecer o neoliberalismo de centro-direita, com donos tradicionais. ‘Vamos dar o golpe, tirar a Dilma, porque qualquer coisa é melhor do que a Dilma. A partir disso, se abriram as comportas: ‘Se isso pode ser feito lá, por que eu não posso repetir a dose?’”.

VOZINHA DA DÚVIDA ESTÁ FALANDO BAIXO

Para ele, nesse processo todo, houve apoio da imprensa e dos intelectuais, “quer por autorização direita, quer por uma certa leniência”. No entanto, quem se apropriou do resultado, foi “uma direita que matou os mentores intelectuais da história. A esquerda sobreviveu ao vendaval”.

Agora, diz ele, há uma espécie de fuga para frente em parcela daqueles que apoiaram o golpe, vendo que os problemas não foram resolvidos com a derrubada de Dilma. Ao contrário, se aprofundaram “Se radicaliza para sufocar a sua dúvida. Essa vozinha está falando baixo, mas está falando lá. A voz está oprimida por gritos, Whatsapp, fake news. Mas vai acontecer o refluxo”.

INCONSEQUÊNCIA VAI TIRAR VIDAS HUMANAS

Na entrevista, Dunker analisa as opções de voto em branco, nulo e a abstenção.

“Votar nulo ou em branco nesse momento é achar que o que está em jogo é você. Enquanto seus interesses particulares, enquanto pirotecnia do seu voto. O que está em jogo somos todos nós. Essa bagunça, essa inconsequência vai tirar vidas humanas. São pessoas e mais pessoas que vão morrer, porque não têm atendimento de saúde. São gerações que vão ficar comprometidas, porque a educação à distância no primeiro grau é uma mentira. Isso vai ter consequência na vida de todos nós”.

COMPLACÊNCIA E DIÁLOGO

Perguntamos como ele conversa, por exemplo, com colegas da universidade que votam em Bolsonaro.

“O ponto principal é reabrir a conversa, suportar ser xingado. É ter um pouco de caridade. O seu amigo está fora de si. Tem que ter complacência. Antes de tudo, perguntar. Suspender a regra do espelho –você me bateu, eu bato também. Humor pode ajudar. Lembrar que a pessoa é a uma pessoa. Pessoalizar. É você mesmo que está me dizendo isso? Lembrar que ela tem laços no mundo, que tem pai, mãe, filhos, um trabalho, que as outras pessoas vão ver ela brincando de urso assassino. O que o seu filho vai pensar disso? Como você vai querer ser lembrado na história? Você fez a sua parte? Qual a sua implicação política e ética com esse processo”.