“Fui presa no dia 13 de dezembro de 1968. Nós tínhamos acabado de ouvir, na Voz do Brasil, a leitura do AI-5. Acabou a Voz do Brasil, a parta dos fundos de nossa casa, no interior de Alagoas, numa região que não tinha água, não tinha luz, não tinha saneamento básico. Entrou um militar armado. Fomos presas, eu, uma amiga, a Rosa, e três crianças. Minha filha tinha dois anos e meio, o outro tinha três e meio, e a filha da Rosa tinha sete.”

O relato é de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, 77, doutora em ciências sociais pela PUC de São Paulo, em entrevista ao TUTAMÉIA (veja no vídeo acima). Ela segue:

“Nós ficamos literalmente sequestrados. Ninguém sabia que nós estávamos presos, a não ser os militantes de nossa organização. Família, advogados, ninguém sabia, nos mudavam de lugar todo mês. Fiquei presa ali com o André e a Priscila, tinha uma cama para nós três. Eles estavam muito magros, muito calor, a comida era insuficiente. A minha filha,  eu tive de alimentá-la com conta-gotas. Eu pegava o leite, falava: `-Abre a boca, Priscila!`, e pingava o leite com conta-gotas.”

Na época, Dodora, como ainda hoje é conhecida, era militante da Ação Popular. Tinha trabalhado no governo de João Goulart, em Brasília, para onde fora com o marido, Aldo, depois de se formar em psicologia, em 1963. Estava lá quando aconteceu o golpe militar.

“No primeiro momento, eu não acreditei. Golpe? No Brasil? Em pleno primeiro de abril? Deve ser um primeiro de abril. Ficou uma certa jocosidade. Embora nós víssemos algumas manifestações, a gente não imaginou que fosse um golpe. Eu somente acreditei quando eu vi os tanques desfilando pelo eixo monumental.”

Ela e outros companheiros se exilaram no Uruguai: “O Jango iria para o Uruguaia, o Brizola ia para o Uruguai, os ministros iriam, o plano era ficar por ali por algum tempo para organizar o retorno ao país. A sensação que nós tínhamos era de que o golpe era algo que iria passar”.

Não passou, mas Dodora e o marido, mais André, nascido no exílio em 1965, trataram de voltar para a luta pela democracia no Brasil. Ficou clandestina até a anistia, mesmo depois da prisão em Alagoas, que ainda está viva na memória.

“Na Marinha, um dos lugares por onde passamos, ficamos presos num quarto de onde não podíamos sair, nem eu nem as crianças. O que faz uma mãe nessa situação? Conta histórias, brinca, estabelece um programa, organiza o que vai fazer o dia inteiro, com crianças que estão no auge da vida.”

As crianças atraíam a atenção e a cobiça dos carcereiros. Num dos lugares, o oficial de plantão chegou para ela, disse que tinha um pedido para fazer e falou:

“Conversei com minha esposa. Nós não temos filhos, nós queríamos saber se a senhora não quer dar seus filhos para nós criarmos. Porque, veja vem, que futuro a senhora vai ter? A senhora está aqui presa, a família não sabe, não veio ninguém procurar vocês, não tem futuro nenhum. E eles vão ser educados, por mim e por minha mulher, com muito amor, com muita atenção…”

Dodora ainda hoje mostra com o corpo encolhido a reação que teve:

“Eu não pude responder nada. Eu não tive condições intelectuais, tamanha foi a desorganização mental em que eu fiquei. Eu fiz aquilo, um gesto, abracei meus dois filhos e saímos, fui para minha cela. E comunicamos que eu não queria mais ficar naquele lugar. Daí fomos transferidos para o Hospital da Polícia Militar em alagoas. Ficamos na ala das doenças infectocontagiosas.”

Sua trajetória de vida a deixa perplexa e indignada ante o momento que o país vive hoje:

“Foi uma experiência devastadora. Hoje em dia meus filhos têm cinquenta anos de idade. Sobrevivemos. Continuamos. Meus filhos são excelentes profissionais, ótimos pais de família, e a gente continua absolutamente atônica com uma proposta de tortura voltando a ser um possível programa e projeto de alguém que venha a ocupar o poder”.

Ela diz:

“Quem porta a bandeira da tortura não deveria receber um voto de nenhum brasileiro. É uma bandeira que nos leva para o pior, que nos leva para trás do ponto de vista civilizatório.”

TORTURA, CLÁUSULA PÉTREA DA BARBÁRIE

Mais do que vítima da violência do Estado, ela fala como estudiosa do tema. Foi coordenadora geral de combate à tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2009 e 2010 e é autora do livro “Tortura – Testemunhos de Um Crime Demasiadamente Humano”.

“Escrevi esse trabalho a partir de uma decisão que tomei quando entrei, em 1977, no presídio Barro Branco, aqui em São Paulo, onde estavam os presos políticos. Fui visitar meu marido, que tinha sido preso naquela ocasião, e fiquei então conhecendo os outros presos. Fui me inteirando da situação de tortura, de que eu já sabia como militante política. Mas eu vi a violência das experiências vividas. Naquele momento decidi escrever sobre isso, o que só veio a acontecer vinte anos depois, em 1997. Foi uma decisão que ocupou a minha alma, ocupou a minha vida.”

A produção foi um aprendizado sobre a natureza humana: “Eu sabia do estrago que a tortura faz, mas toda a construção da tortura como uma mecanismo de Estado, como um instrumento de imobilização de seus opositores , e todas as construções que o conceito de tortura envolve, me assustaram, porque eu fui percebendo que essa decisão não começou com a ditadura no Brasil nem com as ditaduras na América Latina, nem com a Segunda Guerra, nem com a Primeira Guerra. Ela remonta aos primórdios da civilização, aonde a tortura se encastela como uma cláusula pétrea da barbárie”.

E aí reflete sobre a campanha eleitoral no Brasil de hoje: “É impressionante que esse tipo de comportamento se mantenha até hoje. Está sendo proposto como uma forma de atuação, uma forma de atuação do Estado novamente, com uma certa adesão”.

Lembra que todo o seu trabalho político, assim como de seus companheiros e outros tantos durante a ditadura, foi para defender a humanidade, a convivência pacífica:

“As conquistas desses militantes políticos, clandestinos, que morreram, que estão desaparecidos, foi para reconstruir a democracia no país. Nenhum militante fez outra proposta que não fosse a de sustentação das instituições democráticas, através do voto, do aprimoramento das instituições, do respeito às questões de saúde, às questões de educação, às questões ambientais, de alimentação, de convivência, de abraçar todos aqueles que foram atingidos pelas políticas de estado durante o período colonial, imperial, aqueles que foram excluídos da sociedade, os afrodescendentes, populações indígenas e tradicionais…”

Houve e há oposição, mas deveria também haver limites para que ela se desenrole nos quadrantes do Estado de direito: “Há divergências no exercício da democracia.  Nós sabemos que a política é um enfrentamento de contraditórios, alianças que se fazem e se desfazem. Agora, inserir na política, como uma plataforma, a tortura, sai na frente como uma bandeira destrutiva.”

O PIOR DO SER HUMANO

Essa autorização pública choca, ainda que se saiba que a tortura continua no Brasil em todos os presídios. “Aqui no Brasil, que foi um Estado fundado na colonização, que aprisionou, submeteu um contingente enorme de africanos sequestrados em seus países, que implantou uma estratégia de tortura, de extermínio, de assassinato, isso se mantém. Nós estamos no ano de 2018, e a tortura volta a ser uma proposta, apresentada como uma possível saída, como possível dispositivo que volte a ser usado.”

A propaganda desse tipo de coisa faz parte de um processo de corrosão social, é sintoma de uma sociedade doentia, explica Dodora, que integra o departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientia, em São Paulo:

“A destrutividade do humano é uma coisa basal. Os humanos não nascem amorosos, os processos de amorosidade é que são construídos. A relação amorosa, de vida, ela se sobrepõe ao que é basal, que é a destrutividade. Quando há um momento em que esses laços amorosos são destruídos pelo ódio, pela mentira, pelas acusações, é como se emergisse o pior do humano. E é esse o momento que nós estamos vivendo em nosso país.”

Continua:

“É impressionante como o ódio passou a ser dito como uma forma de ser, atacar o outro como uma forma de estar. Desqualificar o homem, a mulher, o casal ou alguém que faz uma escolha sexual, alguém que é de uma outra religião ou alguém que tenha outro posicionamento político. Um ataque racial, LGBT, às mulheres, um ataque machista. Quem faz isso são pessoas igualmente humanas, e por que um humano precisa destruir um outro humano?”

Ela diz que é preciso interromper esse processo. Por isso, ela diz:

“Não vote em Bolsonaro. Alguém que considera que a tortura é um dispositivo que pode ser usado publicamente, como uma forma de agressão, de punição, é porque o mínimo de avanço civilizatório não foi seguido, não foi absorvido por uma pessoa assim.”