“Na China há um processo de ausência completa de financeirização e ausência completa de neoliberalismo. A China evita a terapia de choque e não se neoliberaliza. Faz uma trajetória nacional desenvolvimentista, antineoliberal. Tem crescimento muito acelerado, inserção nas cadeias globais de valor, com um Estado fortíssimo, que não deixa o neoliberalismo avançar. Nesse processo, o papel do Partido Comunista da China é absolutamente fundamental. O partido está acima do Estado. Esse nacional desenvolvimentismo, que eles vão chamar de socialismo de mercado com características chinesas, é fortemente anti-imperialista”.

Assim Isabela Nogueira explica ao TUTAMÉIA as razões do sucesso do desenvolvimento chinês, no momento em que o Partido Comunista do país completa 100 anos. Professora do Instituto de Economia e do Programa de Pós em Economia Política Internacional (PEPI) e coordenadora do LabChina (Laboratório de Estudos em Economia Política da China), todos da UFRJ, ela foi pesquisadora visitante da Tsinghua University (China) e do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos em Maputo (Moçambique). Também foi professora visitante em economia internacional da Aalto University (Finlândia) e professora do Instituto de Socioeconomia na Universidade de Genebra (Suíça).

Nesta entrevista, Nogueira compara o desempenho chinês com o dos países da América Latina, que, enxarcados de neoliberalismo, vivem longos períodos de baixo crescimento e estagnação (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“A grande divergência é explicada por um processo de entrada radical da América Latina e do Brasil no neoliberalismo versus um processo de ausência completa de financeirização e de neoliberalismo na China”, diz. As marcas dessas trajetórias desaparecem começam a surgir na segunda metade do século passado:

“A partir dos anos 1980, 1990 há dois grandes movimentos que acontecem no capitalismo global. Um é o da formação de cadeias globais de valor, o fatiamento da produção pelo mundo, pelas empresas norte-americanas, europeias, japonesas, com a China sendo o chão de fábrica disso. E o outro é o da financeirização/liberalização comercial/liberalização total, o sumiço do Estado e a emergência de um modelo liberal que vai ser hegemônico a partir daí.  A China não entra na ordem neoliberal. Ela se recusa em todos os aspectos”.

Ela segue: “A China é, entre os grandes países do mundo, o que mais exerce controle de capitais. Isso tem um impacto radical, porque não vai ter financeirização. Ela mantém uma fatia estatal na economia que é absolutamente fenomenal. De 25% a 40% do PIB chinês, o que significa milhões de Petrobras, milhões de empresas estatais definindo para onde vai o crescimento, organizando esse crescimento. E tem também uma trajetória de desenvolvimento agrário muito diferente do caso brasileiro. É muito centrada no pequeno camponês. A despeito do crescimento muito acelerado, a desigualdade não vai se aproximar da doença social que é no Brasil e na América Latina do ponto de vista das fraturas sociais, das enormes desigualdades”.

Para Isabela, a desigualdade é um dos grandes desafios para a China. Em que pese divergências com a forma de enfrentamento dessa questão crucial, a professora da UFRJ declara:

“A condição de vida de vida das pessoas nos últimos 40 anos melhorou de maneira extraordinária. Os 10% mais pobres melhoraram de maneira constante, ao contrário dos EUA, onde eles ficaram mais pobres. Na China, houve melhoria em todos os extratos sociais, mas o 1% mais rico está melhorando mais rapidamente. A pobreza extrema foi erradicada no ano passado. 800 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza extrema em 40 anos. A desigualdade cresceu muito desde os anos 1980 até 2010. E, desde então, as desigualdades estão estáveis. Estacionou num nível moderadamente alto. Não tem nada a ver com o Brasil. É muito mais igualitário que o Brasil, a Índia, a África do Sul. Não está nem um pouco próximo disso. Mas está ainda muito longe da Europa ocidental, do Japão”.

Isabela comenta o papel central do Partido Comunista da China em todo esse processo. Ela ressalta a importância do legado da experiência anti-imperalista, que está na origem do partido. “Se há um elemento de continuidade entre a fundação da República Popular da China, em 1949, e a China hoje é o papel do nacionalismo e da luta anti-imperialista na constituição e na visão do que é ser uma China forte. A modernização é um projeto político. Sem a modernização não existe a própria China. Há um projeto muito claro de fortalecimento nacional e de modernização altamente ancorado nessa ideia de que a modernização é um pré-requisito para a existência da nação”.

E afirma:

“A China não ficou no chão de fábrica dos anos 1980, nas cadeias globais de valor. Ela foi galgando posições e hoje disputa com os EUA não mais um emparelhamento, mas a busca pela liderança tecnológica, por padrões tecnológicos que vão ser usados mundo afora. E o Partido Comunista encarna esse papel do grande planejador da nação e do executor desses planos”.