Cinquenta e sete minutos e vinte e um segundos de alegria. Foi o tempo que levei para completar, caminhando, os cinco quilômetros da Corrida do Bombeiro, primeira prova em que participo desde janeiro de 2020.
Teve a pandemia, a reclusão, o resguardo. Houve também a retomada, a esperança, o trote. Ainda vieram por cima as dores, os perrengues, um travamento completo, o diagnóstico de doença autoimune nas juntas e dobradiças desse velho corpo.
Corrida, nunca mais! (Pelo menos, por enquanto).
Como quando não tem tu, vai tu mesmo, sigo caminhando e contando histórias.
Comecei o projeto TUTAMÉIA NA CABEÇA, transmitindo ao vivo minhas impressões e imprecisões, pensamentos e palavras ao vento quem me vêm à cabeça enquanto caminho pela cidade. Nos percursos, fiz várias viagens no tempo, descobrindo histórias das mulheres e homens homenageades nas ruas de São Paulo e relembrando momentos de minha vida de corredor –já são 25 anos na estrada, algumas dezenas de milhares de quilômetros percorridos em metrópoles e vilarejos, em montanhas, praias e florestas, sob sol e chuva, vento e neve, solidão e multitude.
Não queria, porém, abandonar o mundo das corridas, deixar de sentir a empolgação, a expectativa, a tensão da largada, o suor salgando a vista, o vislumbre do pórtico, o relaxar feliz, satisfeito da chegada.
A Corrida do Bombeiro, com distâncias de cinco e dez quilômetro, me pareceu perfeita. Poderia caminhar o percurso menor mais ou menos no tempo em que boa parte dos corredores do trajeto mais longo estaria chegando, o que aumenta a emoção do final. O local da prova e a data especial serviriam de temas para as histórias contadas ao longo da caminhada (clique no vídeo acima para acompanhar o percurso completo e minhas lembranças e observações e encontros e saudades e esperanças e homenagens feitas ao longo da prova; não deixe de se inscrever no TUTAMÉIA TV).
Foi depois de uma corrida em torno do Parque da Independência, no Ipiranga, que encontrei um herói de meus tempos de criança: o Vigilante Rodoviário, protagonista de um imperdível seriado acompanhado em televisor preto-e-branco em meados dos anos 1960, sentado no sofá da casa da vó, torcendo mais por Lobo, o pastor alemão do policial, do que propriamente pelo agente da lei.
Foi numa Corrida do Bombeiro, no século passado, que fiz minha estreia nos dez quilômetros –que logo passariam a dez milhas, meia maratona, depois maratona, mais tarde maratona e meia, até os cem quilômetros….
Neste ano, pelas artes do calendário, a prova caiu bem na data que a inspira, o Dois de Julho, Dia do Bombeiro, que lembra o dia da assinatura por Dom Pedro Segundo, em 1856, do primeiro decreto regulamentando, no Brasil, o serviço de extinção de incêndios.
O dia também celebra a memória de um grande corredor e herói da Segunda Guerra, o norte-americano Louis Zamperini, morto em 2014, aos 97anos. Atleta olímpico, deu show nos 5.000 metros nos Jogos de 1936, em Berlim, com desempenho que lhe valeu até cumprimentos de Hitler. Anos mais tarde, caiu prisioneiro dos japoneses, aliados no líder nazista; mas sua história de bravura e resistência só ficou mais conhecida no mundo neste século, com o filme “Invencível”, dirigido por Angelina Jolie e lançado no final de 2014.
Quando da morte de Zamperini, publiquei na Folha, onde eu era o editor de Informática, texto contando a história do atleta herói de guerra e recuperando entrevista que ele me concedera em 2011, por e-mail. Leia a seguir a íntegra.
ZAMPERINI, O INVENCÍVEL, MORRE AOS 97 ANOS NOS EUA
POR RODOLFO LUCENA
Texto publicado originalmente na folha em 04/07/14
Em missão contra os japoneses, na Segunda Guerra, o avião bombardeiro em que estava levou mais de 500 balaços, mas ele saiu vivo. Dias depois, em um simples treinamento com outra aeronave, o aparelho falhou e ele caiu no Pacífico, em meio a lugar nenhum. Passou 47 dias à deriva e acabou resgatado pelos inimigos: até o fim da guerra, foi prisioneiro em campo de concentração, enfrentando torturas e humilhações a cada dia.
“A corrida me ajudou a enfrentar a dor”, me disse ele em entrevista por e-mail feita em 2011. De fato, quando corria, ele dava tudo de si: chegou a ser corredor olímpico, disputando prova de pista em Berlim-1936. Na guerra, enquanto outros descansavam e lambiam as feridas, ele treinava até quase a exaustão.
Sobreviveu aos japoneses, voltou aos Estados Unidos, mas as lembranças do sofrimento detonaram suas emoções. Caiu em depressão, recorreu às drogas e ao alcoolismo e, quando estava quase à morte, redescobriu a si mesmo. Até pouco tempo atrás, dava palestras para grupo de jovens contando seu processo de luta e redenção; nas horas vagas, fazia coisas diversas: aprender a andar de skate, por exemplo.
LOUIS ZAMPERINI, corredor olímpico e herói de guerra, morreu em paz durante o sono na última quarta-feira (2.7), nos Estados Unidos. Tinha 97 anos.
Suas aventuras foram eternizadas no livro “Unbroken” (tem versão em português, “Invencível”, que está há anos na lista dos mais vendidos do NYTimes e vai virar filme pelas mãos de Angelina Jolie).
Há dois anos, escrevi uma reportagem na revista “O2” contando um pouco da história desse grande homem, que agora nos deixa. A seguir, a íntegra do texto (as fotos nesta mensagem são do arquivo pessoal de Laura Hillenbrand, autora da biografia de Louis e ela também uma guerreira, sobrevivente de doença incapacitante –abaixo, os dois em um carinhoso momento).
INVENCÍVEL
Quando a sineta bimbalhou, anunciando a última volta, a corrida já não valia mais nada para ele. Em poucos segundos, ouro, prata e bronze já tinham dono, enquanto ele continuava encaixotado no segundo pelotão, pagando o preço dos recentes abusos na comida, do peso ganho em poucos dias. Só lhe restava mesmo desistir.
Fez a segunda curva da pista de atletismo, entrou na reta oposta, e qualquer coisa lhe fez lembrar o que era, sentiu renascer-lhe os brios, a vontade de lutar. Ele acelerou.
Passou um, passou dois, chegou à curva do fundo e seguiu correndo, entrou veloz na reta final. As arquibancadas trovejavam aplaudindo o esforço inútil do corredor que levava no peito o número 751. Mesmo vendo, lá na frente, mais um e mais outro e outro ainda cruzando a linha de chegada, ele acelerou.
Aplaudido de pé pelas 100 mil pessoas que lotavam o Estádio Olímpico de Berlim, o norte-americano Louis Zamperini terminou em oitavo lugar a prova dos 5.000 m dos Jogos Olímpicos de 1936. Tinha feito a última volta em 56 segundos, tempo inimaginável para a época –quatro anos antes, a última volta do recorde mundial da distância fora corrida em 69s2.
Depois da chuveirada, ele e a delegação norte-americana foi chamada ao camarote de Hitler, que acompanhava os Jogos como uma operação de guerra. Folgado, o filho de imigrantes italianos entregou a Joseph Goebbels, o temido ministro alemão da propaganda, uma máquina fotográfica, pedindo que fizesse uma foto do ditador alemão.
Para surpresa de todos, Goebbels não só concordou como apresentou a Hitler o audacioso autor do pedido. Ao que o “fuhrer” comentou: “Ah, você é o garoto com final rápido.”
Zamperini tinha então apenas 19 anos, mas já vivera muito, escapara duas vezes da morte e ainda teria muitas vezes sua vida ameaçada, ao longo da Segunda Guerra Mundial –foi prisioneiro de guerra dos japoneses, vítima de torturas impensáveis. Voltou vivo quase por milagre, mas em pouco tempo sucumbiu ao estresse pós-trauma, entregou-se à depressão e a bebedeiras, de onde saiu depois de uma epifania religiosa.
Até o mês passado, aos 95 anos, continuava sendo mais rápido do que o inimigo definitivo: no início de dezembro faria uma palestra na Base Edwards da Força Aérea dos Estados Unidos, contando com simpatia suas aventuras, que mais parecem coisa saída da cabeça de algum rocambolesco romancista (abaixo, Zamperini na sua festa de aniversário de 97 anos).
Louie, como a família e os amigos o chamam, nasceu em Olean, Nova York, em 26 de janeiro de 1917. Quando tinha dois anos, foi vítima de pneumonia, doença que já havia atacado seu irmão Pete, dois anos mais velho. Os pais, imigrantes italianos, acataram o conselho do médico de buscar terras mais quentes e se mudaram para a Califórnia.
Pouco antes da mudança, a casa onde viviam pegou fogo. Quando todos estavam a salvo, no jardim, alguém notou que faltava o pequeno Louie. Seu pai voltou correndo para a casa em chamas e encontrou o garoto dormindo embaixo da cama. Foi o tempo de pegar o menino e dar um salto para a rua; em seguida, o teto desabou. “Foi a primeira vez que escapei da morte”, lembrou Zamperini numa entrevista para a Fundação de Atletismo Amador de Los Angeles.
Um ano depois, na Califórnia, brincava com coleguinhas quando um garoto o desafiou para uma corrida: tinham de ir até a esquina, atravessar a rua e encostar a mão em uma palmeira do outro lado. O rival foi mais rápido, mas acabou atropelado enquanto atravessava a rua. “Perdi a primeira corrida da minha vida, mas mais uma vez escapei por pouco da morte”, contou.
Aos poucos, o episódio foi sendo esquecido pelo menino, que enfrentava outros problemas enquanto. Na escola, era discriminado porque não conseguia entender o que os professores e os outros garotos diziam –afinal, na casa dos Zamperini só se falava italiano. Mesmo quando a família foi obrigada a falar inglês pelo bem dos filhos, não ajudou muito: era o típico inglês macarrônico, e os garotos continuavam sendo vítimas de brincadeiras dos colegas –não poucas vezes, violentas.
O pai de Louie, que fora lutador na juventude, ensinou ao garoto alguns movimentos do boxe, esquivas, golpes rápidos. O menino rapidamente pôs em prática o aprendizado e em pouco tempo se transformou no terror de Torrance. Brigava, roubava, bebia, fumava, arrombava portas, era ameaçado por vítimas furiosas, não poucas armadas, em aventuras que costumava terminar com o garoto correndo “feito um louco”, como dizia.
Nos primeiros anos da adolescência, estava no caminho certo para longos períodos de detenção em reformatórios juvenis; mais tarde, a cadeia seria talvez o seu destino, quem sabe até a pena máxima. Foi seu irmão mais velho, Pete, que veio com a solução para tentar impedir que aquela tragédia anunciada se consumasse. Conseguiu convencer pais, professores e até o diretor da escola que a salvação de Louie estava no esporte.
Pete já fazia parte do time de atletismo da escola e acreditava que seu irmão poderia ter sucesso. Todo mundo concordou em dar mais uma chance a Louie. Era o ano de 1932, e o garoto começou a temporada odiando tudo aquilo, arrastando-se na pista e treinando obrigado, açoitado a golpes de vara que o irmão, que o acompanhava de bicicleta nos treinos, lhe dava quando não era rápido o suficiente.
Começou a vencer. No final da temporada, tornou-se o primeiro garoto de Torrance a participar das finais de uma competição intermunicipal de atletismo. No ano seguinte, com 16 anos, já estava apaixonado pelas corridas, feliz com as atenções que as vitórias lhe traziam: até as meninas começavam a gostar dele.
“A corrida me tirou de uma vida de garoto-problema”, me disse ele em uma curta entrevista por e-mail. Apesar de sua participação nos Jogos de Berlim-1936 e de outras conquistas posteriores, a prova que mais lhe trouxe satisfação foi uma competição escolar de cross country, quando bateu os recordes de todas as categorias…
Naquela época, nos idos de 1933, derrubava recorde após recorde nos 400 metros, nos 800 m, na milha e até nas provas de duas milhas (3.200 m). Em 1934, correu a milha (1.609 m) em 4min21s3, diminuindo em dois segundos o recorde anterior dos alunos do ensino médio, derrubando uma marca estabelecida durante a Primeira Guerra Mundial. Seu tempo só seria superado 19 anos depois.
Apesar de sua progressão fantástica, no final do ano seguinte, quando os sonhos de todos os esportistas se voltavam para a Olimpíada, percebeu que não seria páreo para os corredores mais velhos e experientes. Por volta de abril de 1936, deu por encerrada sua tentativa de disputar os 1.500 m nos em Berlim.
No mês seguinte, porém, ficou sabendo que haveria uma corrida de 5.000 m no Los Angeles Coliseum e que Norman Bright, recordista norte-americano das duas milhas e segundo no país nos 5.000 m estaria presente. Resolveu testar suas forças na distância, 12 voltas e meia na pista, que ele descrevia como “uma câmara de tortura de 15 minutos”.
Terminou cabeça a cabeça com Bright, passou a acreditar que tinha chances e tratou de disputar as provas seletivas para entrar no esquadrão olímpico dos Estados Unidos. Em julho estava a bordo do navio a vapor Manhattan, que levava para a Alemanha a equipe dos EUA, além de jornalistas, empresários, socialites e ricaços em geral.
Louie treinava correndo no convés, lutava para ficar em pé quando o navio sofria com as grandes ondas, roubava lembranças de viagem como faziam quase todos os outros e, acima de tudo, comia. Com 19 anos, era um garoto magricela, esfomeado pela lembrança dos dias de pobreza. Seu apetite chegava a impressionar a ele mesmo que chegou a escrever em uma carta o quanto havia comido no jantar do dia 17 de julho de 1936: “Meio litro de suco de abacaxi, duas tigelas de caldo de carne, duas saladas de sardinha, cinco pãezinhos, dois copos grandes de leite, quatro pepinos doces em conserva (pequenos), dois pratos de frango, duas porções de batata doce, quatro pedaços de manteiga, três porções de sorvete com biscoito wafer, três fatias de pão de ló com cobertura de açúcar, 680 gramas de cereja, uma maçã, uma laranja, um copo de água gelada”.
O resultado seria um recorde: durante a viagem, foi o atleta que mais aumentou de peso, ganhando 5,4 quilos durante os nove dias da travessia. Houve quem não ganhasse tanto peso, mas perdesse a chance de disputar os Jogos, como ele conta ao lembrar as aventuras no vapor Manhattan.
“Uma nadadora famosa decidiu sair do deque em que estavam os atletas, foi para a primeira classe para ficar com o filho de Hearst [William Randolph Hearst, magnata da imprensa], com quem dançava e bebia champanhe. Acabou expulsa da equipe olímpica por causa de seu comportamento, mas foi contratada como comentarista dos Jogos por um dos jornais de Hearst.”
Depois de sua prova no Estádio Olímpico, Zamperini saiu com os amigos em várias noitadas. Em um desses passeios, talvez já alegre demais, viu a bandeira do Terceiro Reich tremulando em um prédio oficial. Parou a observar o trajeto dos sentinelas que montavam guarda ao edifício e, quando estavam longe, correu, saltou e … não agarrou a bandeira. Pulou de novo, segurou a flâmula, que saiu rasgada enquanto Zamperini caía de bunda no chão, com um barulho surdo, que chamou a atenção dos guardas.
Tratou de fazer o que sabia: correu. Mas ainda conseguiu ouvir o ruído de fuzis sendo engatilhados e o grito de “Alto!”. Obedeceu. “Foi a coisa mais inteligente que fiz na minha vida”, brincaria ele anos mais tarde, recordando a conversa cheia de gestos que se seguiu e que acabou com todos rindo e com a bandeira rasgada devidamente dobrada, guardada em um bolso e levada para os Estados Unidos como suvenir.
Voltou à pátria e começou a carreira como esportista universitário –graças ao atletismo, podia cursar a universidade que quisesse; dos vários convites, ficou com a Universidade do Sul da Califórnia. E foi em nome da UCS que, em 1938, quebrou o recorde da milha, graças a um treinamento pouco convencional para a época, idealizado por ele mesmo.
“Era um programa secreto, que realizei sem que meu técnico soubesse: correr em subidas. Os treinadores e médicos eram contra, diziam que era prejudicial para o coração.” Mas não havia colinas na região, então ele tratou de subir as arquibancadas do estádio da universidade.
Depois de cada sessão de treino, ia ao estádio e subia as escadarias vezes sem conta, numa preparação estafante, que servia também para moldar seu espírito para suportar a dor.
E dor ele sentiu no dia da prova, num dia quente de junho de 1938. Não pelo esforço físico, mas pelo ataque de outros concorrentes, estudantes de universidades do Leste dos EUA, cujos técnicos tinham decidido vencer a qualquer custo –o que significava tirar Zamperini da competição.
“O plano deles era me deixar encaixotado [cercado por outros corredores] e, nas duas primeiras voltas, eles conseguiram. Eu reclamei, e os caras só me xingavam, tentavam me derrubar, davam socos. Alguns me atingiram as canelas com as travas das sapatilhas. Quando tentei uma ultrapassagem, levei uma cotovelada que trincou uma de minhas costelas. Levei um pisão e a trava furou meu pé… Até que consegui um espaço e disparei”, contou ele à Fundação do Atletismo Amador de Los Angeles.
Com o sapato rasgado, sangue descendo pelas canelas e o peito dolorido, venceu, mas ficou triste, cabisbaixo, frustrado, imaginando que tivesse sido uma corrida lenta. Errou.
No estádio de Mineápolis, fechara a milha em 4min08s3, novo recorde universitário. Seu tempo reinaria por 15 anos.
E foi assim que, quando a Segunda Grande Guerra estourou, Zamperini era visto no mundo esportivo amador como um dos candidatos –alguns o consideram o melhor candidato– a derrubar a mítica marca dos quatro minutos na milha.
O ataque japonês a Pearl Harbour mudou tudo. De uma hora para outra o corredor virou soldado, aviador, especialista em bombardeios. Envolveu-se em batalhas sangrentas, ajudou a arrasar cidades e, quando voltava para a base, no Havaí, tratava de correr sempre que podia, tentando manter a forma e o espírito guerreiro.
Numa missão, as coisas quase deram errado. Era chegar à região do alvo, soltar as bombas e voltar. Mas não contavam com a rapidez dos aviões japoneses, os ágeis caças Zero, que metralharam os aviões norte-americanos sem dó nem piedade. Zamperini conseguiu escapar, mesmo com seu avião crivado de balas –594 buracos, contados um a um por fuzileiros navais impressionados com a capacidade de sobrevivência de homens e máquina.
O desastre se deu na tarefa seguinte, sem a participação de nenhum inimigo. Foi mandado em uma missão de resgate num avião que vinha dando problemas. Acabou caindo ao mar. Só Zamperini e dois companheiros se salvaram –um acabou não resistindo durante a provação.
Ficaram 47 dias à deriva, quase enlouquecidos pelo sol e o sal, pela fome e pelo medo. Com remos, batiam em tubarões que rondavam os botes; pescavam e caçavam pássaros com as mãos, bebiam água da chuva e sangue dos bichos que conseguiam pegar, numa luta insana e incansável para ficar vivo só mais um segundo, um minuto, uma hora, um dia, sonhando sempre em chegar à terra firme.
Acabaram resgatados por um navio japonês e transformados em prisioneiros de guerra. Louis Zamperini, um atleta de 1,68 m, pesava então menos de 40 quilos –30 quilos, segundo alguns registros. De qualquer forma, tinha perdido quase metade de sua massa corporal.
Durante os dois anos seguintes, não iria ganhar muito mais peso, submetido a torturas constantes em campos de concentração japoneses. Sua primeira parada foi na Ilha da Morte, aonde os prisioneiros eram levados para serem executados. “Aqueles 43 dias em Kwajelin foram os mais difíceis de minha vida. Tudo era ruim, a comida era atirada na sujeira, um buraco no chão de minha cela servia como latrina, e minha cabeça ficava perto daquele buraco a noite toda. Havia piolhos, pulgas, insetos por todo o lado. Eu rezava para voltar no tempo, para ficar à deriva no mar…”, me disse ele na entrevista por e-mail.
Mas não voltou. Para os americanos, era tido como morto. Mas sobreviveu à Ilha da Morte, não sabe por quê, sendo levado para outro campo de concentração. As torturas continuaram, Zamperini virou joguete na mão de um sádico comandante de prisão. Imaginava que estava enlouquecendo, acordava tentando inventar formas de escapar de seu algoz, sonhava com os espancamentos e humilhações…
O sofrimento só acabou com o fim da guerra, a debandada dos oficiais japoneses e a chegada das tropas americanas. Zamperini não tinha mais condições de correr, mas estava vivo.
“A corrida me ajudou a sobreviver. Acho que aumentou a minha capacidade de suportar a dor”, me disse ele na entrevista, que reproduzo a seguir.
“SEMPRE FUI REBELDE”
RODOLFO LUCENA – O senhor enfrentou muito sofrimento ao longo da vida. Qual foi o período mais difícil?
LOUIS ZAMPERINI – Os 43 dias que eu passei em Kwajelin (“Ilha das Execuções”) foram os mais duros. Tudo era muito ruim, a comida era atirada na sujeira, um buraco na minha cela servia como latrina, e eu tinha de ficar com a cabeça perto da latrina a noite toda. Havia insetos por toda a parte. Eu rezava para que fosse possível voltar ao bote no mar [onde quase morreu por inanição ao ficar 27 dias à deriva sem água nem comida]…
RODOLFO LUCENA – O que fez com que o senhor sobrevivesse a todas as dificuldades?
LOUIS ZAMPERINI – Eu sempre fui um sujeito rebelde e cresci aprendendo a ser durão. Também estava bem preparado para enfrentar as dificuldades por causa de meu aprendizado nos escoteiros e nos cursos de sobrevivência [no Exército].
RODOLFO LUCENA – Qual a importância da corrida para sua sobrevivência como prisioneiro de guerra?
LOUIS ZAMPERINI – Acho que aumentou a minha capacidade de suportar a dor.
RODOLFO LUCENA – Qual foi a importância da corrida na sua vida? Qual sua melhor e pior corrida.
LOUIS ZAMPERINI – A corrida me tirou de uma vida de confusão [quando começou a correr, na adolescência, era um garoto rebelde e se encaminhava para uma vida transviada]. Minha melhor corrida foi quando eu ainda era estudante,no campeonato estadual de cross country. Em ganhei de todo mundo, até mesmo de rapazes mais velhos e mais experientes,e estabeleci novos recordes estudantis. Minha pior corrida foi um desafio de duas milhas contra um colega, Cal Berkley, quando eu desmaiei depois da prova, sem saber que um dos meus pulmões estava cheio de pus, por causa de uma doença chamada pleurisia.
RODOLFO LUCENA – O senhor ainda corre ou faz exercícios?
LOUIS ZAMPERINI – Hoje em dia, já não corro, mas faço exercícios como subir escadas ou fazer flexões apoiado no armário da cozinha.
RODOLFO LUCENA – Qual é a sua atividade atual?
LOUIS ZAMPERINI – Eu venho fazendo palestras, ensinando às pessoas como enfrentar o estresse, a raiva e a hostilidade. Eu procuro ficar animado em quaisquer circunstâncias, porque acredito que todas as coisas acabam contribuindo para o bem. Eu aconselho o meu público a ser durão. Por ser durão eu quero dizer que as pessoas devem desenvolver a capacidade de resolver seus próprios problemas. Assim, a gente se torna mais capaz de enfrentar outros tipos de problema.
RODOLFO LUCENA – Qual foi o impacto do sucesso de “Unbroken” na sua vida?
LOUIS ZAMPERINI – Eu não estava preparado para o “assalto” à minha agenda, que agora está sempre lotada, mas estou adorando receber os convites para palestras. Eu falo a grupos em todo o país, umas duas ou três vezes por semana. O melhor é que estou viajando de primeira classe, sou muito bem recompensado e ainda passo a conhecer muita gente interessante.
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