“Eu ouvi o pessoal gritando comigo, eu já estava mais entendida na linguagem deles e tinha um pessoal de um país lá próximo, que eles falavam português, eles começaram a falar comigo que eu era a única negra para chegar ao pódio. As quatro primeiras eram loiras mesmo, brancas, e eu era a única negra. E eles pediam assim para mim, para eu ter garra e honrar a pele negra. Era como se eles dissessem: ‘Salva nós! Leva nós pro pódio. Mostra que nós temos capacidade!’ E nós temos mesmo.”

Assim Maria Auxiliadora Venâncio relembra um dos momentos mais emocionantes de sua segunda participação na Comrades, a maior, mais importante e mais antiga ultramaratona do planeta, realizada na África do Sul desde 1921 e apontada como uma das mais difíceis do mundo, marcada por longas subidas no percurso de quase noventa quilômetros.

Única brasileira a ter subido duas vezes ao pódio naquela prova, Dora fala sobre sua trajetória no DESASSOSSEGO, programa sobre atividade física, saúde e qualidade de vida do TUTAMÉIA. O programa tem ainda a participação do chef Rafael Lucena, que ensina a preparar um prato especial para corredores, que dá energia para enfrentar longas distâncias, como faz há quatro décadas a nossa entrevistada.

Hoje prestes a completar 65 anos, aposentada ma no tropo –comanda uma animada equipe de corredores em Taboão da Serra, cidade da Grande São Paulo onde vive há quase cinquenta anos–, a atleta conta sobre seu início nas corridas, os longos treinos solitários e a conquista do recorde mundial em provas de cem quilômetros, na categoria veteranas (mulheres de mais de 40 anos).

Lembra também os perrengues, as trapaças sofridas, o dinheiro perdido, a correria para cuidar da família e ainda encaminhar na vida dezenas de sobrinhos. Em tudo, diz, precisava de advogado. Pois então, desassossegada com a pasmaceira da aposentadoria, ela enfrenta agora outro desafio, fazendo faculdade de direito:

“Eu falei: vou ficar em casa, aposentada? Aí montei essa assessoria esportiva. Continuei dando treino duas vezes por semana, fazendo meus coopers e cuidando da neta. Estava pouco, porque nos outros dias eu ficava sem fazer nada. Decidi me jogar nos estudos. Direito civil! Porque é onde eu levei mais cacetada durante a minha vida. Ganhei muito, mas perdi muito também. Ainda bem que eu soube trabalhar com pouco. Por não entender de administração, por não entender de contabilidade, e não entender principalmente os meus direitos. E, com isso, eu consigo passar, para quem está ao meu lado, os direitos de cada um, os direitos das mulheres, os direitos do cidadão comum, os direitos, principalmente, dos negros.”

Preocupação que também tem com sua comunidade de origem, o povo da Serra do Zé Pereira, em Minas Gerais, onde ainda criança pequena ajudava a família na roça e de onde saiu aos onze anos, sozinha, para vir trabalhar como babá na casa de uma família em São Paulo.

“No ano passado, nós descobrimos que nós somos quilombolas, com documentação e tudo pela Ministério Público de Minas Gerais, os meus parentes estão ainda nesse lugarejo, que é a Serra do Zé Pereira, todo esse pessoal hoje são todos reconhecidos como quilombolas”, conta ela.

E segue: “Antigamente, eu saía de lá, andava oito quilômetros para estudar, naquela época. Hoje, eles têm escola, tem cesta básica, tem educação. A água nossa era água de bica, água suja, tanto que duas vezes por ano, era obrigatório, nem pediam autorização pros nossos pais, nós tomávamos remédios para vermes na escola. Eu acho que somos fortes, os quilombolas são fortes. Principalmente aquele pessoal que eu conheci muito bem, que são os quilombolas da Serra do Zé Pereira. Hoje tem poucos para contar a história, tem poucos mais idosos do que eu. Tem alguns amigos mais idosos, tem a minha irmã, que tem 74 anos, tem meu irmão, que tem 75. A gente vem resgatando a história e contando para fazer até livro.”

É o que forja hoje sua identidade, como nos diz antes de começar a entrevista: “Eu sou conhecida como Auxiliadora das Maratonas. Pois acho que agora vou ser Auxiliadora dos Quilombolas” (confira no vídeo acima a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).