A exemplo do que fez a Nike brasileira na primeira década deste século, a Strava anuncia campanha que diminui, achincalha, desqualifica, trata como desnecessário ou mesmo inútil o nobre ato de pensar, vital para os humanos –e quase sempre considerado ameaçador por aqueles que querem impor sua vontade sobre a dos demais.
A Strava, todos sabem, mas não custa lembrar, é uma das grandes empresas planetárias que gravitam em torno do esporte e da atividade física. O mais conhecido produto da companhia é um aplicativo que permite monitorar muitos tipos de atividade esportiva e funciona também como uma rede social para aficionados de corrida, ciclismo, natação e por aí vai.
No site brasileiro, a empresa assim se apresenta: “Somos a principal plataforma para quem ama se movimentar. Oferecemos mais de 30 tipos de atividades com recursos que ajudam você a explorar, fazer novos contatos e medir seu progresso”. E ainda: “Somos a maior comunidade esportiva do mundo. Mais de 100 milhões de atletas em 195 países usam o Strava”.
Pois é essa empresa que anuncia para a primeira semana de julho o lançamento do projeto “Nem pensa, SÓ VAI!”, que ela chama de “desafio”. A campanha propõe a prática de 450 minutos de atividade física ao longo do mês. Quem completar a tarefa recebe “um troféu digital exclusivo”, como diz o material de divulgação distribuído à imprensa.
O tal desafio pode até ter lá seus méritos, que naufragam completamente sob o peso da frase que dá o mote à campanha. Além de formulada em português pedregulhoso, apresenta a ideia de que não se deve pensar para fazer as coisas, de que o pensamento atrapalha a vida e a consecução de objetivos “mais importantes”.
Ao mesmo tempo, coloca as duas ações –“pensar” e “ir” (no caso, “ir fazer atividade física”)– como se fossem não apenas opostas como também excludentes. O subtexto manda a mensagem: “Pensar é ruim, pensar é prejudicial. O bom é ir”. É um absurdo!
A intenção talvez não fosse essa, mas não importa: é isso que está escrito. E profissionais da comunicação deveriam ser muito atentos e dar muito valor ao significado das palavras, como comentei ao longo de minha caminhada de hoje pelas ruas de São Paulo (clique no vídeo acima para acompanhar o percurso e viajar comigo pela cidade; aproveite e se inscreve no canal TUTAMÉIA TV).
A ordem anti-intelectual, antipensamento da Strava não é incomum no mundo esportivo. Lá nos idos de 2010, a Nike inundou as alamedas da Cidade Universitária de São Paulo com cartazes que berravam: “Não pense. Corra.”
O espírito, como se vê, é o mesmo. A frase da Nike está mais bem escrita e soa melhor do que a da Strava, mas propaga a mesma ideia, tornada ainda mais chocante por ter sido difundida numa comunidade em que o centro de tudo é a atividade intelectual. A empresa reconheceu que a campanha não funcionou e tratou de modificá-la.
Na época, o então gerente de marketing da categoria running da Nike, Christiano Coelho, me disse: “Concordamos que pode haver um entendimento dúbio por quem não é desse universo da corrida. A gente está trocando para poder ter uma mensagem mais neutra, que evite qualquer mal-estar”.
O registro dessa entrevista com Coelho está em texto que publiquei em primeiro de abril de 2010, no caderno “Equilíbrio”, da “Folha de S. Paulo”. Eu produzia a coluna “+Corrida”, e o título do artigo em questão é “Pensar não engorda”, que reproduzo a seguir. Não sem antes dizer que este espaço está aberto para comentários que a Strava queira fazer. Quem sabe até, seguindo o exemplo da Nike há mais de dez anos, anunciar a mudança do mote.
PENSAR NÃO ENGORDA
(Texto de Rodolfo Lucena publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 01.04.2010)
Fiquei chocado e indignado quando, ao chegar para meu treino na Cidade Universitária, vi a propaganda a gritar: “Não pense. Corra”. O slogan da Nike, exposto nos relógios que indicam horário e temperatura, era até ofensivo à academia, templo da inteligência, da busca do conhecimento.
A propaganda propõe o oposto do que busco na corrida -um momento em que a mente possa descansar e voar, embalada pelo suor e pelas passadas.
Nos treinos, resolvo em pensamentos casos do trabalho, defino títulos, rascunho mensagens, imagino contos, medito sobre as dificuldades e as alegrias da vida e do amor ou simplesmente deixo a mente, os sentidos todos alertas e abertos para ouvir, cheirar, ver, compartilhar com o mundo o que o mundo quiser me dar.
Recomendar que o corredor não pense cheira a heresia: vai contra a natureza do próprio movimento, que exige raciocínio para existir.
A psicóloga do esporte Sâmia Hallage explica: “Existem comportamentos que estão condicionados, que fazemos automaticamente.
Mas, para que se tornassem automáticos, tivemos que pensar em algum momento.
Os movimentos da corrida podem estar automatizados, mas pensamos -e muito- quando corremos”.
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP, professora Lucia Santaella, ensina: “Só a morte nos levaria a parar de pensar. O pensamento, não necessariamente verbal, nos acompanha. Até mesmo o sonho é um tipo de pensamento”.
Para o competidor, é essencial estar “focado”, diz o especialista em treinamento Rodrigo Ferraz: “Quem está com o pensamento direcionado apenas para o que está fazendo leva vantagem sobre os que estão dispersos”.
Não é de estranhar, então, que a campanha da Nike tenha suscitado críticas. A empresa pensou e resolveu modificar a propaganda do seu novo tênis de corrida -os cartazes colocados nos relógios da USP no início de março foram trocados no último fim de semana.
“O que se buscou com essa campanha foi valorizar um atributo do produto”, diz o gerente de marketing da categoria running, Christiano Coelho. Mas não deu muito certo, admite: “Concordamos que pode haver um entendimento dúbio por quem não é desse universo da corrida. A gente está trocando para poder ter uma mensagem mais neutra, que evite qualquer mal-estar”.
E tem outra: pensar não engorda, como me garante a nutricionista Patrícia Oliveira: “Também não emagrece, mas ajuda a refletir e acalmar. Ficamos menos ansiosos e, consequentemente, comemos menos”.
Por isso, pense e corra. Ou corra. E pense.
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