“Nós sabemos que a direita e a extrema direita podem muito, com suas mídias, com seus dinheiros, com a captura das instituições do Estado para utilizá-las a seu serviço. Eles podem muito, mas não podem tudo. Porque tem resistência, porque tem reação, porque tem luta, porque tem esperança e porque tem povo. E o povo, quando muito confrontado, quando muito aviltado, quando fica sem condições, reage. Então não tem como eles acharem que vão entrar na América Latina, vão dar os seus golpes e aqui vão permanecer como sempre permaneceram historicamente. Antes faziam as ditaduras civis, das elites, depois as militares e agora há essa tentativa das ditaduras políticas e judiciais, com a perseguição, o law fare, a perseguição de lideranças políticas progressistas. Mas isso não tem sustentação o tempo inteiro. Há o momento de reação. A Bolívia, inclusive de forma rápida, mostrou isso. Mostrou que há resistência, que há luta, que há esperança, e que a falta de olhar para a maioria do povo não deixa esses regimes se estabilizarem. Houve esse enfrentamento, essa articulação, mostrando que dá para reverter.”
É a reflexão que faz a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, falando ao TUTAMÉIA desde La Paz, na Bolívia, no dia seguinte à espetacular conquista do partido de Evo Morales nas eleições presidenciais, quase exatamente um ano depois do violento e sangrento golpe que apeou do poder o partido Movimento ao Socialismo. A chapa Luiz Arce/David Choquehuanca obteve cerca de 53% dos votos (dados não oficiais) nas eleições deste último domingo (18/10), o que lhe valeu a vitória no primeiro turno, reconhecida pelo principal opositor, pela presidenta interina –que assumiu depois do golpe do ano passado—e pela OEA, que também apoiou a derrubada de Morales, então eleito para seu quarto mandato presidencial.
Hoffmann chegou a La Paz na sexta-feira, encontrando um clima tenso, conforme relata na entrevista (clique no vídeo acima para ver a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV). Havia razões para isso, diz ela: “Acompanhamos o processo eleitoral com muita apreensão, pois não sabíamos o que ia acontecer no domingo. Como golpe aqui foi muito violento, inclusive com manifestações de violência aberta, física, perseguição, agressões a pessoas, o governo que assumiu a presidência interina é de extrema direita, o responsável pela coordenação de governo também é uma pessoa muito violenta em seus atos, então temíamos muito que não se realizassem as eleições, para que esse governo continuasse. Eles tomaram o poder do jeito que tomaram, obviamente que não gostariam de largar. Durante esse ano de governo interino, foram várias as denúncias de corrupção, de desvios, de problemas, então eles estavam com a imagem bastante desgastada. Mesmo assim, ficamos muito apreensivos”.
O domingo, porém, foi calmo: “Não teve nenhum incidente relevante, com alto índice de comparecimento às urnas em todo o país. Havia aqui em La Paz, no centro, a presença do Exército nas ruas, agora o que me informaram que isso é um pouco tradição aqui, as Forças Armadas acompanharem, embora eu tenha achado meio demais, era muita gente mesmo”.
As coisas poderiam desandar depois do fechamento das urnas: “Havia preocupação com a apuração, porque o sistema foi mudado no dia anterior às eleições. Suspenderam o “conteio rápido”, que era um sistema de divulgar resultados intermediários, parciais. Achamos que poderia ter alguma coisa. Mas, enfim, começou o processo de apuração, e aqui também sai uma pesquisa de boca de urna duas horas depois que fecham as urnas. E a pesquisa não saiu. E o Tribunal Eleitoral demorou para se manifestar, havia muitas críticas, muita apreensão. À meia-noite é que o Tribunal liberou para que a boca de urna fosse divulgada, e também divulgou o tal do conteio rápido. E a surpresa grande foi que o MAS, o partido de Evo Morales, que tem o Lucho Arce como candidato a presidente, o David Choquehuanca como candidato a vice, alcançou 52,4%. Até o final da apuração dos votos, esse índice pode crescer”.
Para Hoffmann, a enorme diferença sobre os opositores –a direita e a ultradireita, somadas, não chegaram a 45% dos votos— desencaminhou qualquer plano golpista: “Aqui fazia-se o cálculo de que, sim, o Arce teria mais de 40%. Havia dúvida se a diferença sobre o segundo colocado seria de mais de dez pontos percentuais, para ter a vitória no primeiro turno. Se fosse um percentual pequeno, avaliávamos que isso ensejaria questionamentos de novo. A direita não ia aceitar o resultado, ia querer segundo turno, no segundo turno ia se reunir para derrotar o MAS, derrotar o Arce, e criaria o clima propício para um novo golpe. Mas o resultado foi muito significativo. Desconfio que foi por isso que demoraram a divulgar a boca de urna, porque eles não sabiam bem o que fazer. Como questionar um resultado que dá 52%? Uma maioria grande para o candidato de Evo Morales, depois de tudo o que aconteceu, depois da perseguição ao MAS, da perseguição aos seus militantes, aos seus deputados, prefeitos, ao próprio Evo. Então demoraram para se articular e viram que não tinha jeito. Tanto que, logo em seguida à divulgação, a presidenta interina parabenizou o Arce e praticamente deu por encerrado o processo, reconhecendo a vitória”.
Na avaliação da presidenta do PT, que foi à Bolívia para levar a Lucho Arce e David Choquehuanca o apoio e a solidariedade do seu partido e o abraço do presidente Lula, foi um momento histórico: “O povo boliviano demonstrou como é possível, num curto espaço de tempo, depois de um golpe tão violento, haver a recuperação da esquerda, dos movimentos, e a participação popular muito intensa. Para nós, da América Latina, da América do Sul, para nós do Brasil, foi uma vitória muito significativa e muito simbólica”.
A vitória nas eleições presidenciais, ainda que possa ter surpreendido a muitos, não saiu do nada, diz Hoffmann relatando conversa que teve com Arce e Choquehuanca: “Eles estavam bastante tranquilos –até fiquem admirada–, muito seguros de que teriam maioria, dizendo que trabalharam muito, construíram isso, que a militância e os movimentos sociais estavam muito atentos, não era como em 2019. Em 2019, havia além de ter aquela polêmica sobre a terceira reeleição de Ervo Morales, então o processo eleitoral já começou sob questionamento, o pessoal estava muito desmobilizado, muita gente no governo, os movimentos mais soltos, então não teve uma reação nem na eleição nem após, como poderia ter ocorrido. Agora, não: agora o pessoal estava muito organizado e mobilizado. E aqui é interessante porque não é apenas uma organização partidária, é uma organização dos movimentos sociais, é uma organização dos povos originários, é uma organização dos trabalhadores, que não tem a ver, necessariamente, com a intervenção do partido junto aos movimentos sociais. O partido é um reflexo, é um instrumento dessa movimentação. Eles têm um grau de organização muito forte, que já vem de muitas lutas, há uma cultura aqui na Bolívia. E isso foi se mobilizando durante o ano, porque os conflitos também exigiram que as pessoas se organizassem e estivessem prontas. Eles foram se organizando e se fortalecendo durante o ano. Então Arce e Choquehuanca estavam muito otimistas, muito seguros”.
O que não significa que o governo do MAS vá navegar em águas calmas, lembra a dirigente do PT: “O fato de que a oposição e a OEA aceitaram não quer dizer que as coisas aqui se resolvam todas bem e dentro de toda a normalidade democrática. Há aqui um conflito, uma divisão do país, embora o MAS tenha uma maioria expressiva. Há uma parte de direita liberal e outra de direita raivosa, que é esse pessoal do Camacho. Esse pessoal vai fazer uma oposição sistemática, contundente e, com certeza, vai querer criar fatos para levar a situações que ensejem conflitos, desestabilização, porque é assim que eles jogam. Aí vamos ver como se comportam esses organismos. Então é óbvio que é preciso continuar acompanhando a Bolívia para ver como essas forças que deram o golpe se comportam agora”.
Além disso, nunca é demais lembrar que o golpe contra Morales foi feito também para atender a interesses norte-americanos, e não se espera que os EUA de repente fiquem adeptos das melhores práticas democráticas: “Os Estados Unidos vão atuar como sempre atuaram em relação à América Latina e à América do Sul, tentando fazer com que os países se submetam aos seus interesses e vão usar de todas as estratégias que puderem, de todos os mecanismos. Essa questão de prejudicar comercialmente, como já fazem com outros países, com certeza, não se tira isso do horizonte. Vai depender muito dos posicionamentos do governo boliviano, como o governo vai se comportar aqui. Não creio que vá ser um governo que vai ser de afronta, ou de confronto. Mas vai ser um governo de posicionamentos firmes, que vai defender algumas posições. E aí, com certeza, em razão disso, devem ocorrer retaliações”.
Isso, apesar de não esperar que o governo de Arce seja agressivo nas suas relações externas: “Mesmo sendo um governo progressista, popular, de esquerda, tendo um projeto diferenciado, de inclusão social, de desenvolvimento diferente, não é um governo que eu penso que vá deixar de fazer determinadas negociações, que são de interesse comercial, que a Bolívia precisa para realmente não ser sufocada. Mas, do ponto de vista internacional, de organismos, de alinhamento, vai se alinhar, com certeza, com o pessoal da esquerda, com os governos mais progressistas e populares.”
O que traz um novo alento para os movimentos democráticos no continente, afirma ela: “Isso anima os projetos populares e democráticos na América Latina. Vamos lembrar que tivemos um período em que nós tínhamos alinhamento com esse projeto, de desenvolvimento inclusivo, social, também de ser altivo do ponto de vista internacional, lutando pela soberania, em vários países: no Brasil, na Bolívia, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, no Equador, na Venezuela, em outros países da América Central e do caribe. Isso deu uma presença e uma força para a América Latina num outro sentido [que não o de submissão]. Óbvio que a direita reagiu. Reagiu forte, veio para a cima. Mas há também uma reação da esquerda. Nós não temos todos os mecanismos e toda a estrutura que a direita tem. Mas temos muita força de luta, muita solidariedade entre os movimentos de esquerda nos países, tem o povo que reage ao ser oprimido por esses sistemas, então isso mostra, para nós, que é possível vencer essa onda de direita e extrema direita, que a gente tem de apostar na resistência e no enfrentamento e, principalmente, apostar na esperança do povo de ter um país diferente, uma outra forma de desenvolvimento econômico em que o povo tenha centralidade, não seja apenas estatística dentro dos dados que eles divulgam”.
Para ela, é possível retomar a esperança: “Devemos ter eleições no Equador. Também lá estava um conflito porque não queriam deixar registrar a chapa do partido do Rafael Correa, queriam tirar a candidatura na caneta, na Justiça. Ontem se resolveu isso, e ele também está como favorito nas disputas. Vamos ter agora o plebiscito do Chile, vamos ter eleições na Venezuela. Acho que a gente está entrando de novo em um processo que dá para a gente unir esforços para recuperar terreno. Acho que é isso que mostra essa vitória na Bolívia. Que não há intimidação. Que dá para enfrentar”.
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