“O Brasil tem grande parte da população em situação de insegurança alimentar, como recentemente divulgou o IBGE. Quase quarenta por cento da população enfrenta insegurança alimentar. E os números são de antes da pandemia. A pandemia não tem nada a ver com a volta do Brasil ao mapa da fome. Tudo siso aconteceu antes da pandemia. A pandemia agrava. A pandemia até agora não teve uma repercussão maior graças ao auxílio emergencial. Mas, se cortar o valor ou se cortar o auxílio definitivamente, eu temo que a gente passe dos atuais números, estimados em 15 milhões de pessoas passando fome, a uma proporção muito maior, chegar aos 40 milhões que nós enfrentamos na época do início do governo Lula, quando começou o Fome Zero.”

É o alerta que faz o agrônomo e doutor em economia José Graziano da Silva, considerado o “pai” do programa Fome Zero lançado no governo Lula, quando foi ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Em entrevista ao TUTAMÉIA, Graziano, que foi diretor geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) de 2012 a 2019, diz que a situação brasileira vem sendo agravada nos últimos anos e, em especial, neste governo, por causa da destruição das políticas públicas.

“Desde 2008, o mundo vem enfrentando uma recessão da qual não consegue sair. Mesmo os países desenvolvidos têm tido o que economistas chamam de voo de galinha, não conseguem decolar. Chegamos à pandemia em crise. Estávamos em um ciclo descendente, quase no fundo do poço procurando sair desse fundo do poço, ensaiando uma retomada, quando a pandemia nos pega. O Brasil, em particular, estava na contramão do processo mundial, porque vinha com taxas negativas de crescimento econômico desde 2016. O agravamento da crise econômica e das condições financeiras do país não traz nada de animador”, afirma ele (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

No que diz respeito à segurança alimentar, o quadro só ficou pior. “Desde 2014, o mundo está na contramão dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Em vez de reduzir o número de pessoas com fome, estamos aumentando, ano após ano, o número de pessoas com fome. Nestes dois últimos anos, a miséria também voltou a crescer.”

Graziano continua: “No caso brasileiro, isso é agravado por uma crise política, que enfrentamos desde a deposição da presidenta Dilma. Essa crise tem se agravado, tem se aprofundado, sem que a gente consiga sair dela. E essa crise se manifesta num desmonte no aparelho público de proteção ao cidadão, das chamadas políticas públicas. Todas as políticas estão se reduzindo sob o argumento de que não tem dinheiro, mas há uma redução deliberada, uma verdadeira política de desmonte, por exemplo, no meio ambiente. Há claramente uma decisão de desregulamentar, de voltar atrás em decisões tomadas de proteger a floresta amazônica, de proteger os manguezais, de proteger os meios de subsistência e vida de grande parte dos produtores, que é a política fundiária. Nós não temos mais política fundiária no Brasil!”

Na entrevista, por sinal, Graziano também abordou a questão fundiária no país, afirmando que quem está lucrando com as queimadas e a destruição do ambiente não é o conjunto do agronegócio, mas sim, principalmente,  os que investem na especulação imobiliária.

Apontou os riscos desse processo para o país e afirmou a necessidade de que o combate à fome seja uma política de estado, que deve incluir também programas de educação alimentar, para que o povo aprenda a ter alimentação de qualidade.

Esse é o espírito que norteia o lançamento do Instituto Fome Zero, empreitada criada por Graziano e outros antigos participantes dos programas de segurança alimentar no governo Lula. No manifesto de fundação, divulgado nesta sexta-feira (15.10), eles afirmam:

“A mudança abrupta do governo federal em 2016, a crise econômica e a volta da orientação neoliberal impactaram diretamente na gestão da Política de SAN com o desmantelamento de programas, redução de participação da sociedade civil, extinção do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, corte de gastos e recursos destinados à proteção social e ao combate à fome.

Dados da aplicação da EBIA – Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – levantados juntamente com a POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares – do IBGE 2017-18 demonstram que a Insegurança Alimentar atingia quase 85 milhões de brasileiros, cifras maiores que aquelas observadas em 2004 em termos absolutos e níveis equivalentes em termos relativos ( 40 % da população em 2004 contra 41% da população em 2017-18). A insegurança alimentar grave, situação equivalente à fome do ponto de vista nutricional, já em 2018 atingia mais de 10 milhões de pessoas ou quase 5% da população.

Nesse contexto de retrocesso da segurança alimentar e nutricional , o Instituto Fome Zero – IFZ – está sendo criado por um grupo de ativistas, estudiosos e pesquisadores que participou na elaboração do Projeto Fome Zero, há exatamente 20 anos, e acompanhou de perto a jornada que logrou erradicar a fome no Brasil.
Esse é um momento de reflexão para o qual convidamos toda a sociedade brasileira a participar. Com a marca permanente da pandemia do COVID -19, o atual quadro de esgarçamento social somente deverá se agravar e soluções paliativas não colocarão o país de volta na trajetória da segurança alimentar e nutricional. Mais além de renovar esforços e a mobilização já feita, o Brasil precisa discutir novas ideias e novas propostas para o combate à fome e a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.

Para tanto, queremos nos somar à mobilização de milhões de pessoas que continuam lutando para que os objetivos do Fome Zero e suas conquistas sejam preservadas, valorizadas e renovadas.”