“No confronto entre o presidente e as vontades corporativas, as corporações venceram. Estão saindo bem desse jogo de cena. Aparentemente, o Exército está limpinho em relação à pandemia. É difícil imaginar que não haja muita pegadinha nessa história. Essa substituição de comando passou como se as corporações resistissem ao Bolsonaro. Como se Bolsonaro não fosse fruto da atividade corporativa, como se as corporações estivessem dissociadas do governo que nós temos. E não estão”.

A análise é do historiador Manuel Domingos Neto ao TUTAMÉIA. Doutor pela Universidade de Paris e especializado em questões militares, ele avalia que a mudança no comando militar “foi uma operação visando salvaguardar a imagem da corporação, uma tentativa de dissociar, de tirar a responsabilidade do Exército dessa catástrofe que estamos vivendo. Parece que foi uma jogada de marketing”.

Na entrevista (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), Domingos classifica Bolsonaro hoje como uma “fera acuada” e prevê a partir de agora uma sucessão de crises no meio militar, que explicitará suas fissuras.

“Vamos colecionar militares descontentes com o governo Bolsonaro. A unidade [entre militares e Bolsonaro] persiste, mas ela não é sustentável. Distensões vão surgindo e será difícil acomodar isso. Não vejo possibilidade de enfrentarmos essa crise com Bolsonaro na Presidência”.

O historiador define a ação dos militares no processo que resultou no golpe de 2016 e na eleição do capitão como “traição à pátria”:

“Optou-se por uma subserviência. Acho que foi uma grande traição à pátria. Quanto mais eles falam em pátria, menos eles são capazes de defini-la como uma sociedade caracterizada por uma comunhão de destino. Quem é a pátria para essas pessoas aí? O mal é profundo. Eles não têm qualquer sentimento de amor à sociedade. Por isso eles aceitam essa mortandade como se não tivessem nada a ver com isso. É uma absoluta falta de patriotismo admitir uma tragédia dessa, uma insensibilidade total”.

 

“CAIU PUJOL! VIVA PUJOL!

Domingos comenta o fato de o novo comandante do Exército ser o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, o mesmo que, em entrevista no domingo passado, confrontou o presidente ao defender medidas científicas no enfrentamento à pandemia.

“Foi Pujol que falou pela boca de Paulo Sérgio e confrontou o governo. Eis que o comandante cai. e o general Paulo Sergio ascende. É uma situação muito curiosa. Caricaturando: Caiu Pujol! Viva Pujol! Porque a vontade do comandante prevaleceu”.

Segue o historiador:

“As corporações ficaram bem na figura. Jornais dizem que o ministro da defesa foi demitido porque não aceitava outra participação política das forças militares. A impressão geral que fica é que o exército está fora da política. É como se as corporações não tivessem responsabilidade sobre esse quadro trágico que estamos vivendo”.

Domingos enxerga “jornalistas estão chutando ideias” e diz que “boa parte das coisas que são ditas nos jornais são plantadas por generais”.

“As manchetes estão tratando o general Pujol como legalista. Tratam o Fernando [Azevedo e Silva, ministro demitido da Defesa] como se fosse um defensor da legalidade. Quando nós sabemos que as Forças Armadas participaram de um processo espúrio, fraudando a soberania popular, interferindo diretamente no resultado das urnas, alijando o candidato principal, falseando as eleições, e colocando um inepto no governo do Brasil”.

Segue Domingos:

“Foi um ato de grave irresponsabilidade das Forças Armadas se envolver nesse processo. Se envolver inclusive coordenando o processo. Os generais sabiam o que esperar de Bolsonaro. Eles conhecem Bolsonaro mais do que nós o conhecemos. Se eles toparam fazer do cara o presidente da República. Essa operação de substituição do comando teve um bocado esse teor de livrar a cara de dizer nós não temos nada a ver com isso”.

O historiador ressalta que a análise que está se consolidando sobre o episódio é a de que o Exército repeliu a tentativa de uso político por parte do presidente da República. “Essa interpretação ignora que o presidente da República é presidente da República inclusive pela responsabilidade dos militares no processo eleitoral. E as corporações persistem aparentemente isentas de responsabilidade na tragédia em que vivemos”, afirma.

BOLSONARO É HOMEM PERDIDO

Fala o historiador sobre o capitão:

“Bolsonaro é cada vez mais limitado. Ele é uma fera acuada, perde respaldo, perde respeito. O pessoal do dinheiro alto também está se afastando. Bolsonaro cai nas pesquisas. Bolsonaro fica aterrorizado com a possibilidade de ter um opositor com grande respaldo popular. Bolsonaro não sabe o que fazer. Quer brigar com os governadores que estão tentado praticar um lockdown. É um homem completamente perdido enquanto a pilha de corpos vai se avolumando no país”.

Diz Domingos:

“Imagine o que aconteceria com o eventual retorno de Lula. Nós cuidaríamos efetivamente da defesa do Brasil, que implica em reduzir o déficit social, continuarmos a inclusão social, que é um ponto chave da defesa do Brasil. Uma sociedade fragmentada não se defende. Ao cuidar das disparidades internas, estamos cuidando da defesa, da união nacional”.

LEGADO COLONIAL NAS FORÇAS ARMADAS

Domingos foi professor da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal Fluminense. Foi vice-presidente do CNPq e deputado federal. Ao TUTAMÉIA, ele trata da evolução do pensamento militar, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, ponto de inflexão para a influência norte-americana nas Forças Armadas.

“Ao assumir a guerra fria depois da Segunda Guerra Mundial, os militares continuaram com o velho legado do tempo monárquico, que, a rigor, é o velho legado colonial. A índole das Forças Armadas brasileiras é colonial”, afirma.

Na sua visão, as Forças Armadas foram “incapazes de identificar outra perspectiva para o Brasil que não fosse de submissão, de alinhamento a uma potência fornecedora de armas. Optou-se por uma subserviência. Acho que foi uma grande traição à pátria. Quanto mais eles falam em pátria, menos eles são capazes de defini-la como uma sociedade caracterizada por uma comunhão de destino”.

“Quem destrói planos de inclusão, quem insiste em manter o legado colonial não pode ter amor à pátria. O nosso trágico legado colonial estava sendo enfrentado e houve uma suspensão, foi abruptamente abortado. O que temos hoje é um país devastado. Quem fez isso não merece o nome de patriota. Foi uma tragédia essa opção dos comandantes que endossaram essa parada de Bolsonaro. Nós pagamos caro por isso”.