“Quem está na periferia está à mercê da violência policial, do descaso. Também fui um desses casos: com 14 anos a polícia colocou uma arma na minha cabeça. Estava com um amigo, com uma bola debaixo do braço, basicamente sendo um jovem de periferia, indo jogar bola no fim de semana, e fomos abordados sem motivo nenhum. Dois meninos sem camisa, de short e chinelo, com uma bola na mão, poderiam provocar medo em quem? A violência verbal, alguém apontando uma arma. Foi a primeira vez que vi uma arma, fiquei assustadíssimo. Tive esse choque muito grande. Quando você tem um choque assim, ou você se revolta ou você se cala. Eu silenciei, comecei a ficar mais quieto, falar menos, tinha medo de voltar tarde para casa.”

A saída, a salvação para aquele garoto que, anos depois, iria se tornar o primeiro brasileiro a chegar a uma semifinal olímpica no taekwondo, foi o esporte.

“O esporte foi que possibilitou que eu me livrasse desses traumas. Eu utilizava tudo isso como forma de energia. Pensava: preciso ganhar esse título, porque é um passo a mais que dou nessa escada para ter uma qualidade de vida melhor”, conta ao TUTAMÉIA o campeão pan-americano de taekwondo (2007) DIOGO ANDRÉ SILVESTRE DA SILVA, que ficou conhecido como Pantera Negra da luta brasileira por causa do gesto de protesto que fez depois de disputar a semifinal nos Jogos de Atenas-2004.

Nascido em uma família pobre em São Sebastião, começou mais seriamente no esporte no início da adolescência, em Campinas, para onde tinha se mudado com a mãe, que iniciava então seus estudos universitários. Lá foi conheceu o treinador Mestre Tilico, que identificou suas potencialidades e o ajudou a entrar no circuito competitivo.

Não foi fácil, conta o atleta (confira a íntegra da entrevista no vídeo acima): “Venho da periferia, sou criado na periferia, desde a periferia no litoral norte, a periferia de campinas. E a periferia no estado de São Paulo é igual como no resto do Brasil: há um descaso muito grande com o esporte. O processo de gentrificação vai jogando a periferia cada vez mais para as bordas, cada vez mais para longe. Essa era a minha primeira dificuldade: locomoção, como chegar ao treino.”

Dificuldades que foi superando na marra: “Persisti muito para não ser um desses atletas que desistiram. Enfrentei estudando, tive uma visão como se eu tivesse saído de meu próprio corpo. Pensei: cara, no que você é bom? Sou bom em luta. Se chega aos Jogos Olímpico, pode vir a ser igual a esses grandes atletas, taí sua chance”.

Por isso, ele diz: “Sou um sobrevivente, e escolhi a luta para ser minha batalha”.

Com 16 anos representou o Brasil no Mundial de juniores de 1998. Saindo pela primeira vez do Brasil, trouxe de Istambul a medalha de bronze. “Naquele momento”, diz, “tomei a decisão de que aquele esporte seria minha profissão”. Ao mesmo tempo, estudava e buscava descobrir, construir a própria identidade.

“Meus canais de acesso à informação eram as bibliotecas públicas das periferias, ali que eu aprendi o comunismo, ali que eu me iniciei nos comunas, porque todo mundo que pensa diferente é comunista. Ali eu li Malcolm X, Martin Luther King, Mandela, quem eram os grandes líderes mundiais, que a escola nunca tinha me falado. A escola me falou que nosso povo foi escravizado, chegou aqui no Brasil para trabalhos forçados, e depois ganhou a abolição porque a princesa assinou um documento. Essa era a história que eu tinha de quem eu era.”

Continua: “Na periferia também há um apagamento de nossa história. Então você fica perdido, porque não sabe sua origem. Ou não se identifica com sua origem. Porque a primeira coisa que você quer é se identificar com o modelo de sucesso. E o modelo de sucesso nunca tem cabelo crespo. O modelo de sucesso nunca é negro, nunca é periférico. Então a gente odiava ser o que a gente era porque a gente não se identificava. Isso faz com que as pessoas alisem o cabelo, mudem de aparência, mudem de comportamento, percam sua identidade”.

A informação é fundamental para a mudança, afirma Silva: “Naqueles livros eu me reencontrei. O que Malcom X fez para mim foi me ajudar a recuperar minha identidade”.

Um trecho da biografia do grande líder do movimento negro norte-americano, em especial, marcou a memória do atleta: “Para mim, o mais marcante desse livro é quando ele pega o dicionário, diz que vai ler o dicionário na cadeia, e daí ele pega a palavra negro. Ali só há termos pejorativos. E depois ele pega a palavra branco, só adjetivos positivos. Quando eu li aquilo, vi: “Nosssa! Preciso batalhar muito, porque a história é bem mais cabeluda do que eu imaginava”.

Para ele, “o livro de Malcolm X foi uma luz”.

Foi o que inspirou a seguir o exemplo dos atletas negros norte-americanos Tommie Smith e John Carlos, que, no pódio olímpico em 1968, ergueram o braço com a mão fechada na saudação dos Panteras Negras –história que Silva também só foi conhecer nas leituras que fazia.

“A partir daquilo, eu tomo a iniciativa de ir para os Jogos com a luva negra para fazer o protesto. Já fui pensando nisso. Mas eu precisava ter êxito. Se não fizesse uma boa apresentação, caísse na primeira rodada, isso não teria muito sentido”.

Queria fazer política: “A ideia de achar que esporte e política andam separados é só uma proposta de alienação. É o que vendem para o atleta: que o atleta não deve se manifestar, que ele não deve se posicionar, que a função dele é só treinar e ter resultados e dar um bom sorriso para fazer uma campanha de publicidade e ganhar dinheiro”.

E usou sua arte, seu esporte, para mandar o recado, depois de atingir posto inédito, disputando a semifinal em Atenas-2004 com um atleta da Coreia do sul, berço do taekwondo.

“Eu não tinha a menor ideia do que ia acontecer, não sabia se as pessoas iam me vaiar, se iam me xingar, se iam me aplaudir. O que eu sabia era: eu vou provocar um grande impacto, e as pessoas vão me dar o direito de falar sobre aquilo que é a minha vida, a minha realidade.”

Lembra: “Na hora, fechei os olhos. Ergui o braço com o punho fechado, a luva negra, abaixei a cabeça e fechei os olhos. Aí comecei a escutar todo mundo aplaudindo. Comecei a escutar aquele “ahhhh”, como num estádio de futebol. Isso é a minha relação com os Jogos Olímpicos, isso tem a ver com minha criação de vida, dos desafios que nós brasileiros temos para ser brasileiros, a gente está sempre fazendo um grande esforço para poder ser melhor.”

Desafio que ele seguiu enfrentando pela vida afora, tanto no esporte, que já não pratica como profissional – “sou um pós-atleta”, diz–, como na música, descoberta ao longo de sua caminhada. Diogo é MC do grupo Senzala Hi-Tech, que lançou no ano passado seu primeiro disco físico. Uma das músicas de maior sucesso do disco é “Bozolândia”, que faz uma crítica à situação do Brasil de hoje.

“A gente está andando para trás., para trás. A cultura está terrível. Nossa educação, a proteção dos grupos étnicos indígenas, a nossa humanidade está sendo desestruturada. Vejo isso como uma estratégia desse governo”, diz ele, que não descarta participar no futuro da política partidária, se lançando como candidato a deputado nas eleições de 2022.