A política de desmonte do Estado levada à frente pelo governo golpista de Temer e as intenções já anunciadas do presidente eleito Jair Bolsonaro são uma ameaça à existência do sistema público de saúde no Brasil.

Esse é o alerta e a advertência que faz o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde no governo Dilma, quando foi responsável pela implementação do programa Mais Médicos –estraçalhado depois de declarações e ameaças de Bolsonaro, que fizeram com quem Cuba deixasse de participar do projeto.

“O cenário é muito crítico mesmo”, diz ele em entrevista ao TUTAMÉIA (confira a íntegra no vídeo acima). “Estamos num momento de profundo risco sobre a existência do sistema público de saúde em nosso país. Estamos na defensiva hoje. O presidente eleito não tem nenhum compromisso com o Sistema Único forte. E o congelamento das verbas para a saúde e parta os programas sociais na prática inviabiliza o SUS.”

Para Padilha, o congelamento “rasga a Constituição”, pois impede que sejam cumpridos preceitos elementares estabelecidos na carta magna: “A saúde é um direito de todos e responsabilidade do Estado”.

Ele continua: “No orçamento de 2019, a atenção primária em saúde, as unidades básicas de atendimento à família, vai ter quase dois bilhões de reais a menos. Ou seja, o que deveria ser a mais vai ser a menos em 2019”.

MORTES POR DIARREIA

As consequências para a vida dos brasileiros são imediatas e dramáticas, como lista Padilha:

“Toda a vez que há redução do acesso ao sistema de saúde pública, redução dos atendimentos e redução de outras políticas sociais associadas, há indicadores que disparam na hora. O mais sensível deles é a mortalidade infantil. Está mais do que claro que o aumento da mortalidade infantil que o Brasil teve, de 2016 para cá, depois de 16 anos consecutivos de redução –a queda vinha desde 2000, de antes do governo Lula, reduzindo ano a não a mortalidade infantil no nosso país–, tem relação direta com a redução das equipes do Saúde da Família.”

“Já houve impacto direto no aumento da mortalidade infantil, teve uma queda brutal na cobertura vacinal –que não tem nada a ver com campanha de Facebook, porque movimentos contra vacinação existem há décadas. A queda vem a partir de 2016. É brutal a redução. A gente tinha cem por cento de cobertura, passou a ter oitenta por cento, setenta e oito por cento no caso da pólio, o que tem a ver com a desmobilização das equipes.”

“E ainda um outro indicador negativo, que é o aumento das internações por doenças sensíveis à atenção básica –hipertensão, diabetes, as doenças pulmonares. As crianças voltaram a morrer de diarreia no Brasil, que era algo que a gente tinha simplesmente acabado.”

São formas de arrochar o sistema único de saúde no Brasil, impedir o seu funcionamento adequado. O que, além de tudo, revela um enorme desconhecimento sobre o peso do SUS no país, como aponta o ex-ministro da Saúde, deputado federal eleito:

“Não existe saída para a saúde, num país como o Brasil, se não houver um sistema público forte. O Brasil é uma país de renda média para baixa, ainda profundamente desigual, o mercado não resolve os problemas de saúde em nosso país. Aliás, o mercado não resolve em lugar nenhum. Os Estados Unidos têm muitos indicadores de saúde abaixo de qualquer outro lugar, custos altíssimos por ser um sistema absolutamente privatizado.”

“Num país como o Brasil é que não resolve mesmo. Para vocês terem uma ideia, mais de noventa por cento dos tratamentos de câncer no Brasil são feitos pelo SUS. Mesmo a pessoa que tem plano de saúde pelo emprego ou tem plano de saúde individual, muitas vezes o tratamento do câncer é feito no SUS, o transplante é feito no SUS, as urgências, as emergências a maior parte das vezes é feita no sistema único de saúde, pelo menos o primeiro atendimento. A SAMU, que salva qualquer pessoa no meio da rua, é do SUS. Então não existe a possibilidade de a gente ter saúde com um mínimo de qualidade sem um sistema público forte em nosso país.”

GUERRA FRIA

A entrevista com Padilha foi realizada no momento em que os 8.500 médicos cubanos participantes do Mais Médicos se despediam do país, iniciando a volta para a Cuba. A retirada foi ordenada pelo governo cubano em resposta a uma série de ameaças do presidente eleito do Brasil, que anunciou a decisão de rever os contratos que permitiam a presença dos cubanos no país.

Padilha condenou a ação de Bolsonaro:

“A discussão sobre o Mais Médicos volta à tona agora porque o presidente eleito acho que não saiu do palanque. Em toda sua vida política como deputado federal e como uma das mais agressivas lideranças da oposição ao governo Dilma, teve esse seu discurso de ódio. Infelizmente, passada as eleições, em vez de perceber que ele deve ser o presidente de todos os brasileiros, ele resolveu repetir esse discurso.”

Na opinião de Padilha, a discussão sobre a presença dos cubanos não tem nada a ver com a qualidade dos médicos nem com o regime de trabalho, mas sim com a questão ideológica:

“Sinceramente, acho que tem uma tática no Brasil de tentar construir um roteiro de filme de 007: o retorno da guerra fria. A matéria que saiu ontem sobre o Mais Médicos, querendo dar ares de negociação secreta entre o PT e Cuba, de troca de informações entre as embaixadas de Brasil e Cuba, sobre o que Cuba oferta em termos de profissionais… A manchete foi `Cuba criou o Mais Médicos`, como se um país que participa de uma pequena das dezenas de ações do Mais Médicos pudesse ser o criador do programa Acho que é uma tentativa política, uma tática do presidente eleito de tentar reeditar o clima da Guerra Fria aqui no Brasil”.

Padilha lembra que o programa, sob quais parâmetros usados para avaliação, sempre recebeu elogios de entidades internacionais e o apoio da população atendida.

“Ele é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como o maior programa de provimento de médicos que um país já fez em um tempo tão curto. A gente trouxe para as áreas remotas do país o que a Austrália demorou vinte anos para trazer –para as comunidades aborígenes, para as comunidades mais remotas—com um programa muito parecido com o nosso, ou seja, criar um programa, um registro especial de medicina, com avaliação mais curta, para o profissional só poder atuar nas áreas mais remotas.”

Com o programa, por exemplo, setecentos municípios brasileiros que NUNCA tinham tido um médico passaram a ser atendidos localmente –em 620 municípios desses, por médicos cubanos. Os profissionais de Cuba foram deslocados para os mais remotos locais, além de atenderem também a população pobre das grandes cidades –“Aqui ao lado, em Campinas, a Unidade Básica de Saúde não tinha um médico de família permanente antes de ter essa cubana. Isso em Campinas, uma cidade que tem três faculdades de medicina, que proporcionalmente tem mais médicos do que a maioria das cidades brasileiras. Imagine quando for falar da região amazônica, da periferia das grandes cidades”.

MEDICINA CUBANA

As acusações contra os médicos cubano e a medicina de Cuba não se sustentam, desmoronam frente a qualquer avaliação minimamente honesta.

“É só a gente comparar os indicadores de saúde e a renda média dos países, o PIB dos países, o que significa o investimento de saúde pública de Cuba”, diz Padilha, afirmando que nenhum país das Américas, com exceção do Canadá, tem indicadores semelhantes aos de Cuba.

Em alguns casos, nem o Canadá tem a excelência cubana: “Cuba, em 2015, alcançou a erradicação da transmissão do vírus do HIV da mãe para o feto. É o único país das Américas que alcançou isso – nem o Canadá conseguiu isso”.

Outros fatos: “Cuba desenvolveu uma vacina para meningite B, que é uma vacina que a gente usa há quase vinte anos aqui no Brasil, que foi um dos fatores fundamentais para a gente não ter mais epidemias de meningite –o mundo não ter mais!”.

E Padilha segue: “Quando fui ministro da Saúde, uma das missões públicas oficiais –ficam dizendo que eram secretas, mas a imprensa cobre, os resultados são divulgados—era para a transferência de tecnologia de dezenove produtos que Cuba desenvolveu, de medicamento para o câncer, vacina contra um tipo de câncer do pulmão –uma descoberta sensacional feita pela medicina cubana–, produtos para um problema sério que a gente tem, que é o chamado pé diabético –o maior fator de amputação de pés no Brasil é decorrente do chamado pé diabético. A pessoa tem diabetes e começa a ter, por conta disso, lesões no pé que chegam ao ponto de ter de amputar o pé. Cuba desenvolveu um produto para reduzir isso, transferiu isso para cá”.

“Ou seja, Cuba é um país absolutamente reconhecido em relação à sua saúde pública. Não à toa, essas missões que Cuba realiza por esses setenta países em todo o mundo são missões recomendadas pela Organização Mundial da Saúde.”

Mais: “Os médicos cubanos ficaram aqui cinco anos. Foram mais de vinte mil médicos. Pega a lista de erros médicos no Brasil. Veja se tem algum médico cubano. Não tem. Essa é uma demonstração prática da qualidade desses profissionais”.

RESISTÊNCIA E REAÇÃO

As ações e ameaças do presidente eleito ao sistema de saúde vão ter resposta, acredita Padilha: “Esses ataques geram impactos concretos, e acredito que isso vá gerar reação da sociedade e dos vários atores políticos. A interrupção do Mais Médicos vai gerar reação dos prefeitos, de todos os partidos. Já está gerando. O novo Congresso vai debater isso. Eu vou estar lá, como deputado federal eleito, vou debater isso, os prefeitos vão pressionar o Congresso sobre isso”.

Assim, apesar de o momento ser de retrocesso, Padilha acredita que é possível ter esperança: “A polêmica voltou, e é uma oportunidade para a gente discutir saúde, medicina, solidariedade entre os povos e na América Latina, acho que o Mais Médicos traz outros temas também. O Mais Médicos era um primeiro passo de uma revolução necessária a ser feita no sistema de saúde pública em nosso país.”