“Fiquei uns 15 dias na UTI, uns cinco, seis dias entubado. Quando eu saí, não tinha força nas pernas nem nos braços, porque você fica imobilizado, sem fazer exercício, comendo nada. O vírus ataca não só o pulmão, mas outros órgãos, como o coração: eu tive um quadro de arritmia, até hoje estou tomando remédio. No quarto, precisava de ajuda da técnica de enfermagem para tomar banho.  Mesmo com oxigênio no nariz, eu não tinha força, condição para me esfregar, passar o sabão na mão, escovar os dentes. Eu não tinha forças, e se eu fizesse, cansava de tal maneira que sentia uma falta de ar como se estivesse sufocando”.

As palavras são do médico Ubiratan de Paula Santos, pneumologista do Instituto do Coração do Hospital de Clínicas da USP, que sobreviveu à covid depois de passar mais de vinte dias no hospital. Ele contou sua experiência ao TUTAMÉIA, em entrevista em que também denunciou o descaso do governo Bolsonaro com a saúde e a vida da população: “Certamente estamos tendo muito mais mortes, dezenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas se houvesse outro tipo de comportamento do governo federal”.

“Bolsonaro desde o começo minimizou a agressividade do vírus, chamou de gripezinha. Minimizou o alcance da pandemia em provocar doenças, levar à incapacidade temporária e a óbito, como estamos vendo. E até hoje não reconhece o erro que cometeu ao minimizar a pandemia e não tomou medidas para reparar o erro que fez, o que levou a que, até o dia de hoje, 84 mil pessoas tenham morrido, outras tantas estão convalescendo da doença, imobilizadas, sofrendo transtornos, causando dificuldades para suas famílias.”

Mais: “Ele várias vezes teve comportamento inadequado, não só de ser possível ele adquirir a doença quando ele circulava sem proteção o tempo todo, e agora, com a doença, ele pode ter. Isso é uma atitude criminosa, que deveria ser criminalizada se nós tivéssemos uma promotora da República, uma Justiça que agisse adequadamente. Ele não só pode transmitir, contaminar outras pessoas, como o exemplo que ele dá para as pessoas, estimula esse tipo de comportamento. É um estímulo para que as pessoas se protejam menos. Então, por parte do presidente, é uma dupla atitude criminosa e irresponsável. Uma, a de transmitir a doença, e outra pelo exemplo que tem dado nesses meses todos. É o exemplo que fez com que o confinamento, o isolamento social tivesse uma baixa adesão em vários locais”.

GENOCÍDIO

A ação de Bolsonaro e seu governo configura, no entender do médico, uma política genocida: “Em março, abril, nós tínhamos informação suficiente sobre o que tinha acontecido e o que estava acontecendo no mundo todo. Nós tínhamos condições de nos prepararmos melhor. As medidas de restrição tomadas deram algum resultado, mas poderiam ter sido muito mais eficientes se tivessem sido tomadas com todo o rigor, se tivesse sido outro o comportamento do governo federal, que ajudasse os estados e municípios a atuar numa mesma direção. Há um genocídio não só no Brasil como em outros países.”

Ele se refere a nações como Bélgica, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos, onde foi enorme a mortandade de idosos, especialmente. Para o doutor Ubiratan, “é muito esquisito países com uma economia e com uma condição muito superior à de outros países mais pobres terem uma taxa de mortalidade dessas. Houve um descuido aí”.

O médico afirma que vai ser preciso investigar o comportamento desses governos: “No mundo todo, estão se criando as condições para que se coloquem em julgamento as responsabilidades. Por que chegamos a isso e como foi tratada a pandemia nesses países, o despreparo, o descaso. É uma coisa necessária. Não podemos deixar passar esse momento”.

A seguir, trechos do depoimento do doutor Ubiratan que, aos sessenta e oito anos, recuperado de Covid, volta às suas tarefas profissionais e a sua militância em defesa da saúde pública e do SUS (clique no vídeo acima para ver a entrevista na íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Em primeiro de maio, comecei a ter sintomas no final do dia: mal estar. No dia seguinte, febre; no outro dia a febre aumentou e tive dores intensas no corpo. Não sei onde peguei isso, provavelmente no InCor, onde trabalho. Fiquei em casa até o dia dez de maio, quando comecei a ficar um pouco cansado demais. Houve uma queda da saturação de oxigênio – eu medi, sou pneumologista, tenho oxímetro–, fui ao pronto socorro do InCor e já fiquei internado. Eu sabia que estava doente, já tinha feito o teste.

Tive uma piora do dia 12 para o dia 13 de maio, e fui para a UTI. Uma piora importante: a imagem radiológica (dos pulmões) do dia 11 para o dia 13 mudou completamente. Meu pulmão era pretinho, normal, ficou todo branco, ficou todo inflamado em menos de dois dias. É muito importante que as pessoas não tenham receio de ir a um hospital quando estão acometidas de Covid: às vezes acham que estão boas e, de um dia para o outro, podem piorar muito.

Na UTI, me passaram um monte de cateter, –arterial, central venoso, sonda nasoenteral, sonda medical, e eu não lembro nada disso. Tive um apagão completo. Depois eu fui entubado, sedado, e aí é claro que você não lembra mesmo. Eu só me lembro da UTI de quando me tiraram o tudo, e eu comecei a ouvir alguma coisa. Vi tirarem aquela coisa da minha garganta, certamente depois eu estava ainda meio zonzo, algum tempo depois é que eu percebi onde eu estava e comecei a tomar conta da situação.

Nos primeiros dias em que fiquei na UTI eu sentia muita falta de ar. Depois que fui extubado, fiquei ainda mais uns dias na UTI para melhorar a minha condição de ventilação, oxigenação do sangue, até que eu desci para o quarto, onde fiquei mais alguns dias até ter alta no dia 2 de junho.

Foram 15 dias na UTI, sendo seis entubado. Eu sou dos casos mais graves porque todo mundo que vai para a UTI, tem de ter entubação, ventilação mecânica, inclusive ficando deitado de barriga para baixo, o que facilita a expansão maior de ar no pulmão, é grave. Há pessoas que ficam mais tempo, dez dias entubado, quinze dias entubado. Em média, as pessoas ficam quatro, cinco dias entubadas.

Na UTI, quando eu tentei sair da cama e sentar numa poltrona, quando eu sentei na cama eu não tinha noção se estava de ponta cabeça ou não. Quando fiz isso, eu já estava lá havia nuns vinte dias deitado, e uma parte do tempo deitado de barriga para baixo. Quando eu virei, eu não tinha noção direito do espaço.

Isso demorou uns dois dias, eu levantava sempre com ajuda. Além disso, eu não tinha força nas pernas nem nos braços, porque você fica imobilizado, sem fazer exercício, comendo nada. O vírus ataca não só o pulmão, mas outros órgãos, como o coração: eu tive um quadro de arritmia –felizmente, rápida, mas tive de usar um medicamento chamado betabloqueador, que estou usando ainda hoje, não sei por quanto tempo será necessário.

O vírus provoca uma inflação no corpo todo e também muscular. Há uma atrofia muscular muito grande, pela imobilização, pela falta de exercício…

Eu não tinha forças para andar. Até quando eu desci para o quarto, por volta do dia 28 de maio, tive de ir de cadeira de rodas. Com cinco litros de oxigênio quando eu cheguei no quarto, para ir ao banheiro precisa ir de cadeira de rodas, para tomar banho precisava de ajuda da técnica de enfermagem, porque, mesmo com oxigênio no nariz, eu não tinha força, condição para me esfregar, passar o sabão na mão, escovar os dentes. Eu não tinha forças, e se eu fizesse, cansava de tal maneira que sentia uma falta de ar como se estivesse sufocando.

Com os dias na enfermaria, com fisioterapia, eu fui melhorando um pouquinho, até que pude ir para casa. Passei a fazer exercício todos os dias, recebi indicação de alimentação especial –eu havia perdido 14 quilos.

Eu contratei um serviço de fisioterapia, consultei o serviço de nutrição do InCor e comprei os suplementos necessários. E o povo em geral, que está desempregado, e sai –como eu saí–, com uma fraqueza? Se ele não tiver esse suplemente, ele vai demorar mais tempo para se recuperar. Ou vai ter de fazer alguma coisa, nessa condição debilitada, o que aumenta o risco de queda, de acidente.

Desde o momento em que entrei no hospital, não tive contato físico nenhum com a minha família. Há uma proibição de visitas, por segurança, para que as pessoas não circulem nesses ambientes. Na enfermaria em que fiquei, só tinha pacientes com covid. Há pessoas que ficam com sequelas neurológicas, vão ficar internadas dois, três mês. Daí elas passam para outro ambiente e então podem vir a receber pessoas da família. Mas, quando estão no período de tratamento da covid, as visitas em geral são proibidas.

Eu me comuniquei por zap com minhas filhas. Naquele período que eu apaguei, eu andei mandando umas mensagens, mas não me lembro nada, só vi depois. Espero não ter feito nenhuma bobagem. Depois da extubação, foi num sábado de manhã, eu não me comuniquei com minhas filhas nem com minha companheira imediatamente porque eu estava muito preocupado sobre como eu iria evoluir. Às vezes, você extuba e tem de voltar a entubar. Eu estava muito ansioso de passar um dia para o outro. Só fui me comunicar com minhas filhas quando achei que estava tendo uma progressão boa, no terceiro dia depois da extubação. Só então tive condições emocionais de contatar minha família.”