“Falta liderança no Brasil para ajudar a conduzir, enfrentar esta crise e essa outra que está por vir. O Brasil hoje está dividido. Está separado, é como se nós tivéssemos dois Brasis, o Brasil que pode ter seu home office, ter acesso a máscaras e a álcool gel, e outro Brasil que já está passando fome, onde falta água, o Samu não chega, e as pessoas moram em cima do córrego. É preciso olhar para esse Brasil e pensar numa política específica para essas favelas. Precisamos de ações concretas para evitar o contágio em massa. Estão ignorando o fato de que existem 14 milhões de brasileiros morando em favelas, e é nas favelas que as pessoas estão morrendo.”

Palavras de Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, uma das maiores favelas do Brasil –encravada no rico bairro paulistano do Morumbi, tem hoje cerca de cem mil moradores. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele advertiu que a crise que o país vive hoje –sanitária, econômica, política—pode se agravar nos próximos meses.

“Quando vem uma situação de fome, que é o está por vir, a cabeça não pensa. Só quem já passou fome é que sabe. O pessoal fala que quem manda no corpo é a cabeça, mas tenta passar fome para ver o que a barriga manda a cabeça fazer. Eu imagino que essa situação sanitária se agrava, somada a essa situação econômica, e que a população que está ficando desempregada daqui a pouco não vai ter o que comer, por conta dessa dificuldade do emprego, possa vir a tomar as ruas. Se nada for feito, é possível haver um caos no Brasil no final do ano para o ano que vem”, aponta o líder comunitário, que é conhecido como “prefeito de Paraisópolis” (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

As políticas governamentais mal servem para minorar o problema: “O auxílio emergencial e outras políticas demoram para chegar. Parece que estão testando as pessoas como cobaias. O auxílio emergencial, quando veio, parecia a fila da morte, com filas imensas que continuam, de pessoas que não conseguem ter acesso –tem gente aqui em Paraisópolis que até hoje não recebeu, gente que está passando fome. E agora, com essa diminuição, nos atinge ainda mais drasticamente. É um a situação muito grave. Temos de pressionar o governo para criar ações de impacto mesmo, que transformem para a vida, não que transformem para a morte”.

O problema é que o governo não está à altura das exigências: “Há descaso, despreparo e falta de liderança no governo nesse momento” é o diagnóstico que faz o líder comunitário.

Pior: o governo contribuiu para que o povo das favelas, num primeiro momento, baixasse a guarda, não tomasse as medidas que poderia para se proteger: “A situação da Covid é uma situação em processo de agravamento. Apesar de a comunidade ter realizado uma série de iniciativas de controle, para amenizar a situação, faltam políticas públicas efetivas. Até políticas de comunicação estão faltando, porque as pessoas aqui na favela, no geral, acreditaram que era uma gripezinha, que só ia pegar gente rica, que só ia pegar quem viajou para o exterior. E a realidade mostra que quem está morrendo, efetivamente, e se contaminando, são negros de periferia, como aqui em Paraisópolis”.

A situação na favela só não é pior porque a própria comunidade tomou nas suas mãos a responsabilidade de enfrentar a pandemia: montou local para que infectados pudessem ser tratados em isolamento, contratou ambulâncias e socorristas, distribuiu mais de 60 mil cestas básicas, entregou cerca de um milhão de marmitas. E, talvez o mais efetivo de tudo: organizou a comunidade em pequenos blocos, criando a figura dos presidentes de rua, cada um responsável por monitorar a situação de 50 famílias.

“Temos 658 presidentes de rua, 85% deles são mulheres”, conta Rodrigues, dizendo que a ideia está dando frutos: favelas em mais de 15 estados já adotaram o sistema.

“Neste momento, a gente continua atuando no trabalho de controle da pandemia, fazendo nossa parte para conter a situação, mas houve um aumento efetivo de número de casos, consequentemente do número de mortes. A gente teve até agora, desde o início da pandemia, 54 pessoas que morreram. É um número menor do que a projeção inicial, porque Paraisópolis tinha uma situação mais do que especial no Brasil, porque os primeiros casos da Covid 19 surgiram no Morumbi, foi o bairro que inicialmente mais testou positivo –talvez por causa do poder aquisitivo da população, que podia pagar pelos testes. E os moradores de Paraisópolis, em sua maioria, trabalham no Morumbi. Então tinha tudo para dar errado. Graças a esse trabalho que estamos fazendo aqui, estamos contendo os casos, mas efetivamente precisamos de investimento público para amenizar a situação”.

Mesmo sem auxílio do Estado, a comunidade avança. Na semana que vem, quando comemora o Dia de Paraisópolis, vão lançar o programa Horta na Laje, parte de um projeto ainda mais ambicioso, o Fazendeiros Urbanos, que prevê a criação de mil hortas comunitárias pelo Brasil afora.

São algumas das iniciativas que jogaram holofotes sobre o trabalho comunitário feito naquela comunidade –que ainda hoje, em plena pandemia, sofre com a falta de água, que na favela é fornecida em sistema de rodízio.

“Nós fizemos um pouquinho, pílulas do que o governo deveria estar fazendo. Estamos pensando em Paraisópolis de maneira global, criando soluções. Mas o governo efetivamente não tem feito o que deveria estar fazendo”, diz Rodrigues.

O que pode ter consequências graves: “Visualizo uma crise ainda maior, uma crise que poderia ser evitada, mas o governo não deu resposta para isso. Quando a fome efetivamente chegar, as pessoas não vão ter alternativa”, alerta o líder comunitário.