“As estatais não são meramente os produtos que vendem. Elas são as pessoas que estão lá, engenheiros, engenheiras, um grau de conhecimento que é uma enorme riqueza. Elas têm planejamento de longo prazo e ativos estratégicos para que possamos planejar os saltos de inovação tecnológica. A Eletrobrás, por exemplo, é muito mais do que uma empresa que produz e distribui energia elétrica. Ela é um acumulado de possiblidades estratégicas. Não podemos raciocinar a Eletrobrás com uma conta de mais ou menos. Temos que raciociná-la com os recursos estratégicos e as possibilidades de estratégicas que ela nos traz. É isso o que faz uma nação com um projeto soberano. O Brasil tem bons ativos de que o governo pensa em se desfazer. São equívocos estratégicos”.
O alerta é de Alessandro Octaviani, professor de direito econômico da USP, em entrevista ao TUTAMÉIA. Ex-conselheiro do Cade e coautor de “Estatais”, ele fala dos erros dos processos de privatização, das incongruências do teto de gastos e da crescente concentração bancária. Defende a retomada da industrialização no bojo de um projeto nacional de desenvolvimento e avalia que o país vai sair maior desse período sombrio e destrutivo em que vivemos (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“Nosso futuro é muito maior do que o nosso presente. É certo que o número atual de mortos é o maior de todas as crises. Mas, tirando essa situação muito doída, nós já saímos de situações que eram piores do que essa. Conseguimos resistir à ditadura de 1964. A sociedade não está parada. Essa pequena jaula em que nos quiseram enquadrar será rompida”, afirma. E segue:
“O rio Amazonas não é passível de ser comprimido em um pequeno córrego. Nós somos o rio Amazonas. O Brasil é a grande água de criatividade do mundo. Não é um pequeno grupelho que se arroga ser o Brasil que vai conter o Brasil. Somos muito mais do que isso. Nos processos históricos, diques que se rompem. Isso já está acontecendo agora”.
Octaviani, estudioso de Celso Furtado, de Darcy Ribeiro e de JK, lembra da enorme crise que o Brasil viveu quando do suicídio de Getúlio Vargas, acossado por interesses externos e pela direita.
“De 1955 a 1960, tivemos uma explosão no Brasil. Anísio Teixeira, Celso Furtado, Santiago Dantas, Bossa Nova, Cinema Novo logo depois. Meses após aquele agosto de 1954, estávamos sorrindo e vibrando. A capacidade de superação do nosso país é enorme. Vamos fazer no presente o que já fizemos no passado. Daqui a pouquinho olharemos para esses meses como se fosse o nosso agosto de 1954. Vamos reconectar com os nossos talentos e sairemos melhor do outro lado da crise”, defende.
PRIVATIZAÇÃO E MENTIRA HISTÓRICA
Octaviani fala da retórica em defesa das privatizações:
“Nos anos 1990, a conversa era de que tinha que vender as estatais para abater a dívida pública. Para pegar esse dinheiro que iria sobrar para investir em saúde e educação. Nós vendemos uma enorme quantidade de estatais, e a dívida pública decuplicou. E a educação e a saúde continuaram muito ruins. Essa linha de argumentação foi uma mentira histórica”.
“Porque a dívida pública não se resolvia na gestão das estatais, mas sim na taxa de juros que o sistema financeiro impunha. Tivemos esse curiosíssimo quadro que é perder patrimônio público ao mesmo tempo em que aumentou a dívida pública”.
“Agora a conversa para justificar o fim das estatais é que elas não são produtivas, ou que se está num descontrole fiscal ou que o privado gerenciaria melhor. Não é possível essa conversa de que o privado gerencia melhor, por exemplo, a Petrobras. Desmembramos e vendemos parte da Petrobras e quem compra é um fundo soberano estatal de país árabe”.
“Olha a bagunça em que nós entramos. Nós incorporamos dentro da formação de preços internos da nossa economia toda a racionalidade geopolítica de um país árabe que compõe a Opep. A Petrobras é uma proteção contra essa racionalidade, para não precisarmos absorver esses choques externos advindos da racionalidade do cartel do petróleo. Estamos erodindo uma barreira que nos levou décadas para conquistar”.
Octaviani segue: “Há interesses para tomar esses recursos que pertencem a todos os brasileiros para que sejam geridos por poucos, para que aquilo que é de muitos vá para poucos. Eles são poderosos e estão em curso, mas nós temos condição de resistir. No momento inicial da história da Petrobras, um presidente deu a vida para que nós pudéssemos [ter a estatal]. A Petrobras vai voltar e nós reorganizaremos nossa economia”.
O professor da USP fala dos processos que foram erodindo a ideia de nação no Brasil. “Seria impossível nos EUA se afirmar que, num Estado de alta produtividade agrícola e industrial –por exemplo a Califórnia—quem governasse a distribuição de energia elétrica fosse a China. Em São Paulo, durante os governos do PSDB, isso entrou tranquilamente. Temos um problema de vulnerabilidade externa”.
VENDENDO GATO POR LEBRE
Octaviani trata ainda dos efeitos perversos da desindustriação para o país. “Agronegócio e sistema financeiro não sustentam uma classe média. Por que os dois não geram indústria e serviços para vivermos num país com larga geração de emprego. Um país só é adequado para se viver se ele tiver muita geração de empregos e classes médias que fazem as tensões sociais serem muito menores. Precisamos industrializar e o Estado tem uma função essencial na retomada da industrialização”.
O professor de direito econômico destaca que o discurso sobre responsabilidade fiscal redundou no período de maior endividamento público na nossa história.
“Tem gente vendendo gato por lebre. São os austericidas, a turma da austeridade à toda prova. Como foi possível, no período de FHC, a dívida pública ter decuplicado ao mesmo tempo em que eles falavam que tinham aprovado uma lei de responsabilidade fiscal?”.
Ele ressalta que a lei de responsabilidade fiscal era a “encarnação de todas as recomendações do FMI dentro do nosso ordenamento jurídico. É o ápice da dominação, quando o subordinado passa, ele próprio, a reproduzir as pautas daquele que o subordina”.
TETO É RECADO AO MERCADO FINANCEIRO
“A lei de reponsabilidade fiscal é a avó da atual conversa sobre o teto de gastos. A lei do teto de gastos foi um recado para o mercado financeiro: ‘A disciplina jurídica no Brasil vai garantir que a gente vai levar esse povo à lona. Vão ficar esfolados, mas vocês terão os seus juros’”.
Octaviani discorre sobre a história de concentração bancária no Brasil, impulsionada a partir da ditadura militar, mas turbinada no período do Plano Real. “Houve aí uma deformação na nossa estrutura econômica. Os bancos se tornam o elemento principal da nossa economia, e a indústria vai sendo paulatinamente erodida. É preciso construir um sistema financeiro que sirva à sociedade brasileira e, não, um sistema financeiro que se sirva da sociedade brasileira”.
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