“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhões de salteadores, que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, à semelhança da terra, ao través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.”

Essas palavras de Luiz Gama  –parte de um texto de solidariedade a José do Patrocínio, que havia sido vítima de ofensas racistas—dão bem a medida do vigor da escrita desse que foi uma das grandes figuras da luta contra a escravidã. “É o único caso de um brasileiro, negro, do século 19, o único caso, no Brasil, de um intelectual negro, um ativista negro que sofreu na pele a escravização”, diz Lígia Fonseca Ferreira, organizadora de obra que mostra a produção jornalística de Gama – “Lições de Resistência – Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro” (edições Sesc)

Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo e doutora pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, com tese sobre a vida e a obra de Luiz Gama, ela falou ao TUTAMÉIA sobre o trabalho e o legado do escritor, poeta e jornalista –advogado também, ainda que sem diploma—neste último 13 de Maio, 133º aniversário da abolição da escravatura.

“Lições de Resistência”, conta ela, é fruto de mais de três anos de trabalho: “Essa pesquisa me revelou ainda um pouco mais dessa da humanidade e desse comprometimento de Luiz Gama com seus irmãos desvalidos, com os ideais republicanos, com a vida das pessoas, algo de que nós estamos precisando muito hoje”, diz Ferreira (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV.

O nome do livro, por sinal, é inspirado por um dos textos de Gama:  “Se algum dia […] os respeitáveis juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica […].”

Essa resistência estava presente, diz a professora, tanto no trabalho jurídico de tentar livrar escravos de seu suplício quanto —talvez principalmente—na tribuna libertária em que transformou sua participação em jornais de São Paulo e do Rio: “Ele leva para seus textos a maneira como ele olha para a sociedade brasileira. Em nenhum momento ele deixou de olhar a sociedade e de escrever e de se colocar com um homem negro que havia sido escravizado”.

E mais: “Era um homem da palavra, da conquista da palavra, que atuou e colocou-a a serviço de seus ideais e de suas ideias. É o ativista, escritor, jornalista que faz da imprensa um espaço de combate, um lugar, como ele diz, para servir aos pequenos em litígio com os grandes”.

E isso fez com vigor e destemor, nunca deixando de denunciar a parcialidade dos juízes no trato de questões dos escravos, como nota no prefácio do livro o professor Luiz Felipe de Alencastro: “Toda a força dos argumentos jurídico e da luta política de Luiz Gama consistiu em dar relevo às fraudes jurídicas, civis e clericais responsáveis pela escravização de milhões de pessoas livres e ao pacto dos sequestradores que abafava o escândalo gerado por tais crimes”.

Lígia Ferreira corrobora: “Desde seus primeiros artigos, o jornalista não se intimidou em mostrar os preconceitos e as desigualdades enraizados na Justiça, um dos pilares do próprio Estado, e o tratamento acintoso do desrespeito aos direitos humanos como um todo. Suas reflexões e perplexidades assemelham-se às que atualmente nos atingem diante dos sórdidos espetáculos a que sem trégua temos assistidos, a ponto de desejar com ele exclamar em coro: ´Época difícil é a que atravessamos para as causas judiciárias´”.

Reafirmando a atualidade da obra de Luiz Gama, Ferreira diz ao TUTAMÉIA: “Depois dos 350 anos de escravidão, estamos vivendo hoje um segundo um crime contra a nossa humanidade, brasileira, contra o nosso povo. Tenho certeza de que o Luiz Gama não estaria calado neste momento, como ele não se calou na sua época”.