“Eu já estava na avenida Paulista, faltando quinhentos metros, vem uma pessoa, desesperada, querendo que eu pegasse a bandeira do Brasil. Ele insistindo, insistindo, eu pego a bandeira, mas não abro a bandeira, porque eu pensei … Olha o pensamento! Ali, faltando talvez um minuto e meio para chegar, eu pensei ainda: Se eu abro essa bandeira e perco, vão dizer ainda: ´Olha essa brasileirinha boba, vai vibrar antes de terminar a prova. Quatro vezes vice e ainda vai querer abrir a bandeira antes…´ E eu pensando nisso, e o cara gritando lá atrás, ‘Abre a bandeira!’”

Assim a multirrecordista Carmem de Oliveira relembra os momentos que antecederam sua vitória na corrida de São Silvestre de 1995, quando se tornou a primeira brasileira a ser campeã da mais importante prova de rua do país. Em entrevista ao TUTAMÉIA, Carmem fala de sua trajetória, do início sofrido, dos perrengues, das conquistas e das lutas políticas –ela tem participado nas manifestações populares contra o governo Bolsonaro.

“Temos de nos reunir para discutir política, a sociedade que queremos, os governos que queremos. E, se não prestar, botar prá fora. E se não for para servir para a gente, botar para fora quantos apareçam. Essa é a corredora, que agora já não corre, mas fala para caramba”, diz ela (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Hoje com 56 anos fala sobre a importância das corridas na sua vida: “Engravidei muito cedo, fui mãe solteira aos 15 anos. Então logo tudo ficou parado na minha vida, o estudo… Comecei a trabalhar muito cedo. O atletismo veio para dar essa possibilidade de dizer: ‘Ôpa, eu não sou só aquela menina traquinas, danada, eu sou algo mais´. O atletismo teve essa função, ser uma ferramenta para buscar uma mudança de vida, conquistar respeito social.’

Filha do meio de um grupo de nove irmãos, começou a trabalhar na adolescência: “Como eu engravidei aos quinze anos, não havia terminado ainda meu segundo grau. Aí eu passei para o noturno. Trabalhei numa padaria. Acordava às cinco da manhã, ficava num meio turno bem puxado, saía às 13h. À tarde ficava em casa, ajudando, e à noite eu fazia o noturno, concluindo ali um primeiro grau.”

A corrida apareceu na vida de Carmem de forma muito pragmática, como ela conta:

“Na oitava série, tinha um professor que falou assim: ‘Olha, gente, quem participar de uma corrida aqui em Sobradinho, não vai precisar fazer uma prova teórica´. E aí eu decidi correr. Aí tinha um colega, que se chamava Marquinhos: ela passava na padaria, e falava assim: ‘Ô Carmem, à tarde vamos treinar? Aí a gente vai participar dessa prova”. Corríamos um quilômetro, andávamos outros três. E ali começou aquela coisa. Mas nada apaixonante, era apenas para cumprir tabela, evitar a prova teórica.”

Na hora do vamo ver, as coisas foram um pouco diferentes: “No dia da corrida, tinha uma subida, eu andei um pedaço muito longo da prova, não foi nada de chegada tranquila. Eu falei: ‘Que coisa difícil esse negócio de correr, meu Deus!’. Mas fui quinta colocada e ganhei um trofeuzinho bem pequenininho. Falei: ‘Nossa, que coisa mais linda, isso parece de ouro’.  Aí fiquei apaixonada por aquele trofeuzinho, achei a coisa mais linda”.

A paixão durou pouco: “Depois disso não corri mais nada. Fui tocar minha vida, trabalhar na padaria, cuidar da minha filha –nessa altura, já havia me separado, estava de volta à casa dos meus pais. Então pronto, vida que segue.”

A vida seguiu no rumo da corrida. No segundo grau, o treinador de atletismo João Sena lembrava da menina que chegara em quinto lugar naquela prova em Sobradinho, tratou de incentivá-la a desenvolver suas habilidades.

“Quando meu treinador me falou de corrida, eu pergunte: esse negócio é bom? Esse negócio vai me dar dinheiro? Na minha vida, eu precisava sobreviver. Eu já tinha uma filha, eu já tinha todas as dificuldades, já não dava mais para ficar fazendo experimentos. Na minha mente, eu perguntava: Será que isso vai dar certo, será que eu posso encarar isso como profissão?”

Deu certo, apesar de todos os treinos sofridos. Ao TUTAMÉIA, Carmem fala sobre muitos daqueles momentos, fala sobre suas experiências em pista, a vida no exterior para treinar, as conquistas. Conta histórias de viagens e de corridas, lembra suas marcas históricas –até hoje, quase trinta anos depois de seu ápice no atletismo, ela ainda é dona de recordes brasileiros em quatro distâncias (veja quadro abaixo). E tem também a melhor marca de uma mulher brasileira na maratona –o tempo não é considerado para registro oficial porque o percurso da maratona de Boston, onde foi obtido, não se enquadra nas exigências da IAAF (a Fifa do atletismo mundial).

Com tais lembranças, ela resume: “Eu fui uma atleta privilegiada. Tive uma sequência maravilhosa de patrocínios, uma sequência que nenhuma brasileira teve. Podia ir aonde precisava para conseguir meu melhor. Não tenho muito que reclamar da minha carreira.”

Isso ela diz hoje. Na época, porém, houve decepções, cobranças e até um certo desânimo por causa dos seus resultados na prova de São Silvestre, onde parecia que ela estava destinada eternamente a bater na trave.

“Fui quatro vezes vice na São Silvestre. O Brasil sedento por uma vitória brasileira, a participação feminina já existia havia vinte anos. E sempre aquela busca: vai dar uma brasileira? Os homens já tinham conseguido vitória, o José João foi o primeiro. Faltava essa representação feminina no primeiro lugar. E aí você vai com tudo, o meu preparo era uma dedicação de quase seis meses, a São Silvestre era o desejo de todos nós, era de conseguir mesmo subir naquele pódio. Era a garantia de patrocínio, era a garantir de ter um clube bom no ano seguinte, era tudo de bom! Só subir no pódio! Mas aí, quatro vezes vice! Foi muito sofrido. Primeira vez segundo lugar, ótimo: logo, no próximo ano, você vai ser a primeira. Aí depois você nem sobre no pódio. Passa um ano, dois, de novo segundo lugar!”

Uma hora tinha de virar.

Ao TUTAMÉIA, Carmem conta tintim  por tintim como foi a sua preparação, os dias que antecederam a São Silvestre de 1995, o andamento da corrida (não perca esse relato na entrevista; clique no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Fala sobre as disputas ao longo do percurso, as lembranças que lhe atazanaram a mente durante a subida da Brigadeiro –onde havia sido deixada para trás por quatro vezes–, a história da bandeira, que enfim desfraldou:

“Vibrei com essa vitória, senti vontade abraçar todo mundo, dei um abraço em mim mesmo. Foi muito maravilhosa, foi muito desejada por mim essa vitória.”

No mundo das corridas, foi também criando sua consciência social e política. Percebeu a discriminação contra a mulher, notou as lambanças da cartolagem, despertou para a sua necessidade de intervir, de participar, de agir para mudar tudo aquilo.

Depois de largar as corridas profissionais, voltou para seu trabalho como servidora pública e tratou de transformar suas ideias em ações. Foi presidente da federação de Atletismo do Distrito Federal e, nas eleições de 2018, candidata a deputada distrital em Brasília pelo PSOL, partido em que atua na corrente Esquerda Marxista.

Nas redes sociais, mostra sua presença em encontros e manifestações em defesa da educação e da saúde, pela democracia:

“Essa sociedade capitalista não tem mais nada para ofertar para a gente. Precisamos mesmo de uma sociedade socialista, com tudo coletivo para a gente usufruir. É dinheiro demais que este país tem, não dá para só os ricos usufruírem, tem de ser a massa trabalhadora, usando, aproveitando, conhecendo, tendo escolas boas, hospitais públicos, de qualidade.  Temos de ter investimento alto em tudo que é público. Eu chamo vocês para que possamos nos organizar. Eu sugiro que vocês encontrem seus pares políticos, para poder dialogar e conhecer e fazer suas intervenções. Precisamos nos organizar para termos mesmo um governo que nos represente, os trabalhadores. E aí vai minha fala: Fora Bolsonaro! Por um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais!”