“Nós apoiamos um lado ou outro em função do quê? Vamos apoiar a autocracia? Não é isso que está em jogo. Não é o regime russo que está em jogo. O que está em jogo é o domínio do mundo. E há uma potência sanguinária que quer manter o domínio. Ela só vai conseguir manter à custa de muito sangue. Nós precisamos deter essa violência de Washington. Se não detivermos, não haverá limite. Esse é o critério de posicionamento. A esquerda está desorientada. Mas a verdade vai se impor. A mesma coisa aconteceu em 1913-1914. A esquerda ficou desorientada. A guerra estonteia”.

Palavras do historiador Manuel Domingos Neto ao TUTAMÉIA, em entrevista em que aborda o andamento do conflito na Ucrânia, o contexto mundial mais abrangente em que ele ocorre e seus possíveis desdobramentos.

“Vivemos atualmente uma transição, que não tem data para acabar. Não vejo como evitar o derramamento de sangue. Quem encara a história… Se não for na Ucrânia, será em outro local. A guerra não poderia ter sido evitada. Porque o que está em jogo é a hegemonia mundial, e não há exemplo histórico de mudança de hegemonia sem derramamento de sangue. Às vezes essa mudança de hegemonia é muito arrastada, prolongada. A última mudança, do ditame de Londres para o ditame de Washington, levou setenta anos”, diz o professor (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Essa última transição de hegemonia começou em 1870, explica  Manuel Domingos Neto:

“É quando aparece a Alemanha como desafiante, ela ganha a guerra franco-prussiana, com o exército mais potente em terra e com uma indústria química avançada. É também quando se decide a unidade lá nos EUA, com o comando de Washington na guerra de secessão. A Alemanha fica unificada e vão aparecendo aí os desafiantes de Londres. O Japão também se adianta; a Turquia se moderniza”.

O primeiro capitulo aberto dessa disputa foi a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918.

“Não se resolveu a parada. A coisa só vai se resolver em Hiroshima e Nagasaki, com Washington dizendo: ‘Eu tenho a força, mando eu’. No passado, houve muito sangue derramado. Como vamos esperar que agora, no século 21, uma mudança de hegemonia… Porque a hegemonia está mudando. É indiscutível, dado o crescimento chinês, sua expansão e a demonstração de força de outras potências, inclusive da Rússia. Na corrida pelos misseis hipersônicos, a Rússia está na dianteira. Não acredito que fosse possível evitar o derramamento de sangue”, diz Manuel.

PASSARAM O PANO EM HIROSHIMA E NAGASAKI

Especialista em questões militares, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, Manuel Domingos ressalta:

“Para mandar no mundo e definir a ordem mundial tem que haver demonstração de força. Manda quem tem força. Desgraçadamente essa é a realidade. É a guerra que, em últimos termos, vai definir quem manda. É brutal dizer isso. Eu sei que é chocante”.

Ele segue:

“As pessoas se chocam com esse raciocínio, porque aquela brutalidade de Hiroshima e Nagasaki foi esquecida. Passou um pano em cima. Americano continuou lindo, bonito, cheiroso depois de fazer aquela atrocidade. Agora está na hora de lembrar. A definição da hegemonia norte-americana e da bipolaridade foi definida transformando pessoas em pó, destruindo imediatamente, mostrando uma capacidade inédita de perversidade. Assim foi definido quem manda no mundo pela última vez”.

Manuel Domingos fala ainda sobre as estratégias militares, políticas, econômicas e midiáticas dos envolvidos no conflito:

“Putin pegou um país degringolado e deu um mínimo de organização. Ele consolidou o poderio russo. A Rússia estava entregue a gângsteres. Parece que ele conseguiu estruturar ao ponto de ter condições de enfrentar essa disputa. Eu não gosto do regime russo, mas o que está em discussão não é o regime russo. O que está em discussão aqui não é se vai ter democracia. O que está em discussão é a ordem mundial”.

PLANO DO PENTÁGONO É DESTRUIR PODERIO RUSSO

Ele continua:
“Essas pessoas que repudiam a invasão não se perguntam se interessaria ao mundo a desestruturação da Rússia. A Rússia estava ameaçada de desestruturação caso não houvesse um gesto. O Putin age na autodefesa, porque o plano do Pentágono era destruir o poderio russo. Esse plano cai bem na alma do europeu. Desde sempre as potencias europeias temeram a vizinhança de uma potência grandiosa. Uma potência que nunca conseguiram destruir. É inimaginável a destruição da Rússia. E é o que se pretendia. Porque colocando bombas, armas de destruição em massa indefensáveis na sua fronteira, Moscou não seria mais nada”.

Para o historiador, talvez a grande novidade desse conflito seja a chamada “guerra de narrativas”. “Essa guerra de narrativas está sendo ganha por Washington, que está impondo para a maioria a sua interpretação no Ocidente. Não se pode dizer que Moscou esteja isolado porque quem tem a China ao lado não se isola. E mais as outras potências médias da Eurásia. Isso representa metade da população do globo”, ressalta.

Além disso, destaca, “os EUA colecionaram muitas inimizades mundo afora. Hoje tem muita gente torcendo para que os EUA percam essa guerra. A guerra é entre Moscou e China contra Washington”.

DÓLAR É INSTRUMENTO DE GUERRA

Sobre as sanções, ele declara:

“O sistema econômico já está profundamente abalado. Vai mudar tudo, sistemas de pagamento as compras e vendas, as cadeiras de suprimentos em todos os ramos industriais A guerra tem o condão de desorganizar tudo, de acelerar processos, de criar novos valores A minha torcida é para que não cheguemos até a guerra nuclear e para que a humanidade saia melhor disso”.

E enfatiza:

“O mundo já não é mais o que era. A credibilidade do sistema de trocas internacionais está perdida. Depois que se bloqueiam recursos do Estado, do Banco Central de uma potência, como os EUA fizeram, ele diz ao mundo que o dólar é um instrumento guerreiro. É um instrumento político. O mundo vai tomar conhecimento que as tais sanções podem ser bem mais letais do que os canhões, os tanques, as bombas. O mundo parece que não prestou atenção na morte de meio milhão de crianças no Iraque. Crianças! Quantos países não sofrerão duramente a penúria. Está em curso uma alteração dos padrões de troca que sequer podemos imaginar”.

E segue:

“A situação é inédita. A Rússia não pode perder. Porque a sua derrota seria a autodestruição. Não há caso de estado poderoso que se que se autodestrua”.

RÚSSIA NÃO QUER OCUPAR A UCRÂNIA

Sobre a evolução do conflito do ponto de vista militar, fala Manuel Domingos:

“Não se ocupa rapidamente um país das dimensões da Ucrânia se houver os mínimos cuidados de não o destruir. Os russos não querem destruir a Ucrânia. Do ponto de vista da estratégia, ela está se desenvolvendo segundo a concepção de Moscou”.

E ressalta:

“Quem é Zelensky para determinar qualquer coisa? Ele depende inteiramente, sobretudo dos EUA. Quem está com os cordões é Washington. Washington obriga os seus parceiros europeus a fazerem coisas que até deus duvida, como foi o caso da Alemanha, prejudicando fortemente a sua economia para obedecer táticas traçadas no Pentágono”.

“O que foi demonstrado até agora foi uma excelente capacidade, uma boa performance no que se chama de interoperabilidade, a combinação de meios. A guerra se dá em quatro ambientes, o terrestre, o marítimo, o aéreo e o cibernético. A rigor os russos têm dado um show. A Ucrânia é um país com a defesa destroçada, mas que tinha experiência e capacidade, e não conseguiu se opor minimamente. Se o espaço ucraniano não está totalmente ocupado é porque os russos não querem. A Rússia não quer ocupar a Ucrânia. O objetivo da Rússia é fazer com que a Ucrânia deixe de ser marionete ou espaço de manobra da Otan”.

CIVILIZADO, DESCULPE INCOMODAR
Manuel Domingos Neto – 10.03.2022

No dia seguinte ao da entrevista concedida ao TUTAMÉIA,

Manuel Domingos Neto publicou o seguinte texto nas suas redes sociais,

aqui republicado com autorização do autor.

“Sou contra a guerra; detesto derramamento de sangue; o diálogo é a única alternativa; guerra é barbárie…”. Escuto essas frases com frequência.

Mas, além dos psicopatas, quem é favor de matanças, deus do céu?

Depois de um amigo expor longamente seu elevado pacifismo, perguntei-lhe se deixara de cantar o hino nacional, uma canção guerreira. Não fiquei para testemunhar seu embaraço.

O fato é que o despreparo e a hipocrisia dominam quando os confrontos armados entram em pauta.

O guerreiro, tendo ou não a dimensão de seu papel, interfere direta e indiretamente, de forma explícita ou encoberta, nas relações sociais, na economia e na cultura. Atua na modelagem de instituições, na configuração e na dinâmica do poder político. Decide a delimitação de territórios e, em boa dose, responde pelo desenho do cenário global.

Ao longo da história, o guerreiro formulou proposições importantes para a sociedade, nem sempre se dando conta disso; engajou-se na construção de sua comunidade antes do surgimento do Estado nacional; antecedeu e alimentou a ficção literária produzida para a exaltação das nacionalidades; garantiu grandes fortunas na indústria do entretenimento.

Os sentidos atribuídos à guerra pela literatura permite uma ideia de sua relevância: mecanismo de seleção da espécie, forma de compatibilizar meios de sobrevivência com o crescimento populacional, processo de aniquilamento-fusão-afirmação de etnias, culturas e línguas, fonte alimentadora da ciência e da tecnologia, momento de ruptura de ordenamentos socioeconômicos e de formação de valores.

Exprimindo disputas por mercados, vontades dominadoras ou projetos libertários, o guerreiro efetiva mudanças sociais e desenha incessantemente o mapa político. A civilização, compreendida como a imposição a todos de padrões, leis, regras e valores, é impensável sem o guerreiro.

Analisando o século XV, Paul Kennedy observou: nada indicava que a Europa dominaria o mundo e que isso decorreria de mudanças propiciadas pelas contendas entre os poderes estabelecidos nesta parte do globo. Enquanto os impérios orientais centralizados impunham a unidade de crenças e práticas (inibindo a renovação das atividades comerciais e militares), a Europa tensionada por disputas entre reinos e cidades-estados, buscava pressurosa o domínio de tecnologias que ampliassem a força bruta. Assim, os meios de transporte e os armamentos progrediram rapidamente capacitando os europeus à hegemonia mundial.

Entretanto, a guerra e os homens que se preparam para matar e morrer em nome de quem exerce ou quer exercer o poder são menosprezados pelo pensamento moderno. Nestes assuntos, Clausewitz, morto em 1831, persiste como referência maior. Os pensadores foram afetados pela guerra, mas evitaram o seu estudo aprofundado. Não se habilitaram para levar em conta o peso dos conflitos sangrentos no processo social. Tornou pobre e insatisfatória a abordagem das pulsões coletivas avassaladoras, dos atores decisivos e de entidades estruturantes.

A guerra intriga: protagonizada por alguns, envolve a todos; corriqueira, é sempre espetacular; despertando repugnância, fascina e glorifica; justificada em nome de princípios elevados, suspende qualquer regra.

Aos encarregados das iniciativas demandadas pela guerra, cabem atribuições difusas, não formalizadas nem facilmente reconhecíveis. Se é fácil identificar o guerreiro, é difícil distinguir a atividade civil da atividade militar. Certos apresentadores de telejornais, por exemplo, atuam como extensão de cadeias de comandos operacionais. São protagonistas de grandes chacinas cinicamente maquiados.

Na guerra, instintos, impulsos e tendências reprimidas se manifestam de forma absoluta. O confronto de vida e morte é a maneira mais eficaz de separação dos humanos; radicaliza as diferenças entre as coletividades. Por consequência, estreita as relações individuais no seio de comunidades. Na expectativa do combate e, sobretudo, no próprio combate, indivíduos anulam diferenças e unem vontades: quando todos correm risco, a individualidade cede ao espírito coletivo.

O resultado da guerra não se manifesta apenas nas condições imediatas das sociedades, constitui patrimônio simbólico da maior valia, alimenta tradições norteadoras do convívio social e legitimadoras do exercício do poder, fundamenta esperanças acerca do futuro.

O fato de a guerra ser menosprezada como objeto de estudo indica a fragilidade da consciência do civilizado. Vista de perto, a guerra abala a sua presunção de superioridade. No conflito de vida e morte, o moderno reage como o “selvagem”.

O civilizado diz repugnar a guerra, mas cultiva suas motivações: a concentração de riqueza e poder; as múltiplas discriminações explosivas entre culturas, etnias, gêneros e crenças religiosas. Em essência, é um hipócrita.