“A minha perna estava sangrando, com um buraco imenso. É que eles colocavam algodão molhado em volta do fio elétrico para não deixar marca. Mas, quando você passa horas nesse choque em cima dos tecidos, os tecidos se deterioram. O general olhou para a minha perna e ficou indignado: ‘Que serviço porco’. Esse é o general, essa é a ‘alta cultura’”.

Quem faz o relato é o economista Ladislau Dowbor. Era 1970 e ele iria embarcar para a Argélia. Era um dos 40 presos políticos que estavam sendo trocados no sequestro do embaixador alemão. O general fazia a inspeção antes do embarque.
O estado físico de Ladislau (e de outros presos) era deplorável em razão da tortura continuada e virou notícia quando eles chegaram a Argel. “O tipo de dor que se causa de onde você põe os fios elétricos é uma coisa pavorosa”, diz.
Aos 83 anos, o hoje professor da PUC-SP fala ao TUTAMÉIA sobre a sua trajetória, a luta armada, a sua labuta para “encontrar saídas da barbárie”.
“A gente fala em golpe, e em ditadura. Eu tendo a tomar um recuo pensando: o que a gente faz como seres humanos? Essa busca para sair da barbárie. A gente sabe os caminhos: é essencialmente pela justiça social, tem que assegurar o básico para todo mundo e temos o suficiente no mundo”, afirma.
Dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária, com Carlos Lamarca, Ladislau relembra o sequestro do cônsul japonês em São Paulo, o exílio e os seus trabalhos antes e depois do golpe de 1964.
“O passado não passa. Para mim, sem nenhuma glorificação política, não ter baixado a cabeça, não ter aceitado os massacres, as humilhações, de eu continuar a briga… Você não apaga o sofrimento, mas dá sentido a ele. Esse testemunho é meu e de mais de 15 mil pessoas que foram presas e massacradas no Brasil naquela época. Batalhar por um país mais junto é bom senso, dignidade humana”, afirma.
Nesta entrevista, gravada em 15 de fevereiro de 2024, Ladislau lembra o contato que teve com militares, quando foi se alistar no Recife. Na época, nos movimentos de cultura popular.
“Conheci Ariano Suassuna. Ajudei a montar, no Teatro Santa Isabel, a primeira apresentação do Auto da Compadecida. Conheci Gilberto Freire, Celso Furtado; acompanhei as reuniões dele na Sudene. Conheci o Paulo Freire e acompanhei as primeiras aulas de alfabetização no município do Cabo, com a filha dele, a Madalena”, rememora.
Pois foi quando se apresentou no quartel, em setembro de 1963, que viu um oficial, que sabia de sua participação nos movimentos sociais, dizer para o militar que o alistava:
“Vamos pegar esses filhos da puta!”
Sobre esse pequeno episódio Ladislau avalia:
“A tensão já se sentia. Tinha Paulo Freire, Miguel Arraes, ligas camponesas. Em setembro de 63, o processo estava caminhando”.
Vindo de São Paulo, Ladislau tinha chegado a Pernambuco por causa do convite do pai, que trabalhava como engenheiro na Açonorte.
“Foi um processo que pesou muito para mim. Desembarcando no Recife, vendo aquela desigualdade tremenda, a riqueza arrogante do pessoal de cima e a miséria em todo o Recife. Isso me chocou profundamente.
Meu pai me convidou para jantar uma lagosta. Entrando no restaurante, à noite, estava uma criança passando fome na porta. Sabe aquele caleidoscópio que você vira assim e todas as pedrinhas mudam? Eu vou jantar uma lagosta e tem uma criança passando fome? Isso não tem justificativa que exista. Isso que me orientou para a economia”.
No exílio na Argélia, Ladislau entrou em contato com as dezenas de movimentos de libertação que floresciam pelo mundo naqueles anos 1970.
“Conheci o MPLA, Amílcar Cabral. O Congresso Nacional Africano me chamou para ver se a gente conseguia libertar o Mandela de Robben Island, tipo assessoria técnica. Porque a gente tinha conseguido liberar muitas pessoas no Brasil”.
“Naquela época, havia ditaduras praticamente em toda a América Latina. Instaladas pelos norte-americanos essencialmente. Tinha as tragédias da Ásia, a China começando a se levantar, tinha as tragédias em todo o Oriente Médio, que continuam”.
No dia do golpe militar de 1964, Ladislau estava na beira do Mar Morto, “meio que escondido no que hoje é Israel”.
Ele conta:
“Eu estava apaixonado pela Paulinha [Pauline Reichstul, que foi assassinada pela ditadura em 1973]. Ela era judia, e eu não era judeu. Os pais dela, quando descobriram, colocaram ela em um avião e a despacharam para Israel. Eu sou teimoso; juntei dinheiro. Fui encontrar a Paulinha na beira do Mar Vermelho. Ficamos um ano escondidos lá. No rádio, a gente ouviu a notícia do golpe. O massacre de camponeses, de pessoas simples não se registrava. Era a barbárie. Nossa situação era de impotência. “
O depoimento integra uma série de entrevistas com o mote “O que eu vi no dia do golpe”.