“O senhor pode ir embora, não vou lhe dar voz de prisão”, disse ao dirigente sindical Osmar Golegã o oficial que comandava, nos primeiros dias de abril de 1964, uma investigação na sede do Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão.

Virei as costas e saí”, conta Golegã ao TUTAMÉIA. “Só que saí e, na porta, já tinha um carro me aguardando, e eu recebi voz de prisão do oficial que já estava lá.”

“Eu nunca tinha me envolvido com nenhum caso policial. Nem multa de trânsito eu tinha. Ele me deu voz de prisão e me levou para o presídio da rua São Francisco. Como estava no início, havia poucos presos. Mas, com o passar dos dias, a coisa foi se avolumando, ficou uma quantidade de presos tão grande que eles resolveram puxar o navio Raul Soares, que estava encalhado não sei onde, trouxeram para Santos para servir de prisão para nós.”

Construído em 1900, o Raul Soares já nem podia navegar por conta própria: foi rebocado do Rio até o porto de Santos, onde chegou na manhã do dia 24 de abril de 1964. Em seguido, foi ocupado como navio-prisão, como havia acontecido em 1935, na Intentona Comunista, e na Revolta dos Sargentos, em 1963.

“Cabos e soldados do Exército, que estavam presos conosco, foram os primeiros a serem levados para o navio. Depois eles pegaram os portuários, eu e outros diretores que também já estavam presos. Então nós fomos os primeiros presos a adentrar o navio”, conta Golegã.

Além dos militares e portuários, dirigentes sindicais das mais diversas categorias, estudantes, professores, artistas –Geraldo Vandré foi um deles–, jornalistas passaram pelas masmorras do Raul Soares. No total, entre presos que ficaram mais tempo e pessoas levadas para interrogatório e averiguação, foram em torno de quinhentos, segundo estimativa da jornalista e pesquisadora Lídia Maria de Melo, autora de “Raul Soares – um navio tatuado em nós”.

“O navio era sucateado. O que se falava era que eles iam colocar nós todos no navio, levar o navio para o alto mar e afundar. Quando fui levado para lá, já imaginei o pior. Naquela época, a repressão em cima de nós era muito grande. Eu acreditei piamente que isso ia acontecer”, diz Golegã nesta entrevista realizada no dia 2 de abril de 2024.

Ele continua:

“Quando cheguei, me puseram numa cela. Eles transformaram os camarotes em cela, e o salão era a carceragem. Eu não fui nem para a carceragem. Não sei onde eles foram arrumaram a ideia de que eu era um elemento perigoso. Eu nunca militei coisíssima nenhuma, e fui considerado elemento perigoso. Eles me puseram numa cela em que eu fiquei isolado, incomunicável. Houve mais gente que ficou incomunicável, mas a maioria foi para o porão, em que ficavam todos em contato, o que aliviava.”

O tratamento era violento sempre, humilhante.

“Nessa cela em que me puseram não tinha água nem gabinete sanitário. Para fazer as necessidades ou conseguir um pouco de água, tinha de pedir para o carcereiro. Todos os guardas andavam só de metralhadora, nenhum portava revólver. Quando precisei usar o banheiro para fazer as necessidades, chamei o carcereiro e perguntei como fazer. Ele disse que tinha um gabinete no fim do corredor, que ele me levaria lá.”

“Ele me levou com a metralhadora sempre apontada para mim. Ele indicou o banheiro, tinha um vaso sanitário exposto. Eu sentei no vaso sanitário, e ele ficou a uns três metros de mim e com a metralhadora apontada. Então você imagina a situação vexatória que é você fazer suas necessidades com um cidadão apontando a metralhadora para a sua cara, com o dedo no gatilho, e você sabendo que eles não estavam para brincadeira, porque a onda que corria sempre era essa: que ninguém iria sair vivo do navio. Essa era a voz corrente.”

Isso era ainda nos primeiros dias da operação, que durou até o final de outubro de 1964 –o navio foi rebocado de volta ao Rio em dois de novembro.

Hoje com 90 anos, Golegã lembra daquele período como um terror constante: “Tudo era na base do medo, de esperar sempre o pior. Nunca tive um momento de tranquilidade, como eu tinha antes. Eu nunca cometi delito nenhum, nunca fiz mal para ninguém, então não tinha medo de ser preso. Só que ali passei a ter medo pela minha vida. A todo momento, eu esperava que fosse levar uma rajada de metralhadora.”

Além das ameaças, muitos foram torturados. E havia as celas de castigo.

“Com o passar do tempo, foram acontecendo revoltas contra o que acontecia lá dentro. Para nos castigar, eles tinham locais no navio que eram celas que eram verdadeiras covas, câmaras mortais. Na área da caldeira do navio, tinha um espaço que eles usavam como cela de castigo. Do lado da caldeira, a temperatura era permanente beirando 50 graus, eles transformaram em cela.”

Os presos reagiam com ironia: “Como não podia deixar de ser, sempre tem os elementos que fazem troça da situação. As celas de castigo logo foram batizadas. Essa que ficava do lado da caldeira, era a El Moroco, que era o nome de boate da Boca do Lixo em Santos. Daí surgiu outra cela, que era o contrário, era fria, estava sempre com água, inundando, fria. Nessa cela puseram o nome de Casablanca, que era outra boate que tinha na Boca do Lixo. Tinha ainda o Night and Day”.

O castigo veio depois de um interrogatório. Golegã, que se considerava um “preso submisso”, se rebelou:

“E um miserável, durante o interrogatório, quis saber como é que eu tinha casa, carro, e ele, que era militar, não tinha nada disso. Foi uma das poucas horas em que eu perdi a paciência com ele, pela ignorância tremenda de falar essa besteira. Disse: ‘Olha, meu camarada, eu não tenho culpa de você ter resolvido ser meganha. Então cumpra com sua obrigação e deixa a meinha vida, a minha vida eu cuidei. Vocês já fizeram levantamento total dos meus bens, de tudo que eu tenho, e eu fiz por merecer, trabalhando.’ Foi esse desgraçado que me mandou pro Casablanca.”

“Era uma cela do navio perto de onde todos os dejetos do navio, toda a tubulação, para ir pro mar, passava pela escotilha, que era o único espaço de ar puro. Então passavam por ali todos os dejetos do navio. Era um cheiro! Era insuportável. Fiquei ali onze dias. Saí dali quase sem poder respirar. Quando eu saí do navio, ainda saí com aquele cheiro do navio. Eu levei o cheiro para casa.”

O depoimento integra uma série de entrevistas sobre o golpe militar de 1964, que está completando sessenta anos. Com o mote “O que eu vi no dia do golpe”, TUTAMÉIA publica mais de três dezenas de vídeos com personagens que vivenciaram aquele momento, como Almino Affonso, João Vicente Goulart, Anita Prestes, Frei Betto, Roberto Requião, Djalma Bom, Luiz Felipe de Alencastro, Ladislau Dowbor, José Genoíno, Roberto Amaral, Guilherme Estrella, Sérgio Ferro e Rose Nogueira.

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