“O Brasil não aguenta. Não aguentamos mais viver dessa forma. Não há mais como a gente aguentar um governo irresponsável, que cometeu crime de responsabilidade. Bolsonaro é o autor desses crimes”. O desabafo é de Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada, que participou da elaboração do pedido de impeachment protocolado na Câmara dos Deputados no último dia 14/7. Reunindo assinaturas de líderes de entidades populares e intelectuais de várias áreas, a petição disseca a multiplicidade de crimes praticados pelo presidente contra a Constituição e contra o povo.

O documento aponta que Bolsonaro, desde o início de seu mandato, atua de maneira grave, reiterada e sistemático no sentido de ofender a Constituição, tendo o “intento criminoso de degradar a ordem social, desarticulando as instituições e estruturas estatais”.

Abrangente, o texto enumera crimes de responsabilidade na forma como Bolsonaro age para acentuar os efeitos da pandemia, desprezando a ciência e provocando a elevação de forma dramática dos números de mortos no Brasil –mais de 75 mil neste 15 de julho de 2020.

“A marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República, que ignorou orientações e compromissos com a ciência e com o engajamento em diretrizes de organismos internacionais formalmente internalizadas no Ordenamento Jurídico brasileiro”, sustenta a petição.

Frente Brasil Popular, Frente do Povo Sem Medo, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento Negro Unificado (MNU), União Nacional dos Estudantes (UNE), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ISA — Instituto Socioambiental, Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) são algumas das mais de quatrocentas entidades que assinam a petição.

Além das organizações, cerca de mil personalidades brasileiras também endossam o pedido de impeachment. Estão lá, por exemplo, as assinaturas de Chico Buarque, Casagrande e Bresser-Pereira, assim como Fábio Konder Comparato, Maria Victoria Benevides, Margarida Genevois, Luiz Gonzaga Belluzzo, Beatriz Bracher, Arrigo Barnabé, Milton Hatoum, Alice Ruiz, Pinky Wainer, Fernando Morais, Nuno Ramos, Sérgio Mamberti, Lilia Schwarcz, Daniela Thomas, Bernardo Carvalho, Marcelo Coelho, José Miguel Wisnick, João Silvério Trevisan, Luiz Ruffato, Marcos Nobre, Jorge da Cunha Lima. Os jornalistas Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, aqui do TUTAMÉIA, também assinam o pedido de impeachment.

Representantes de movimentos populares fazem ato em Brasília depois do registro do pedido de impeachment – Foto Divulgação

O texto, de 141 páginas, trata do extermínio dos direitos dos trabalhadores, das ações contra os povos indígenas, quilombolas. Dos ataques ao ambiente, à imprensa, à cultura. Mostra como há crime nas posições racistas, contra as mulheres, os grupos LGBTI. Condena o discurso oficial racista e em defesa da ditadura militar que implantou o terrorismo de Estado no país. Afirma que Bolsonaro age no sentido da “desconstrução de direitos políticos individuais e sociais” e enxerga seu “desequilíbrio e obsessão em disseminar mentiras, ódio e preconceito”.

O pedido de impeachment acusa o presidente de atentar contra a Constituição ao praticar uma política externa que viola princípios como a independência nacional, autodeterminação dos povos, a não ingerência em questões internas de outros países, a busca pela paz e pela cooperação, a prevalência dos direitos humanos. Ao agir contra preceitos constitucionais, diz o texto, Bolsonaro compromete a soberania nacional.

Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, a jurista Kenarik Boujikian aborda os temas que motivaram o pedido de impeachment. Ela relata que o documento é fruto dos debates com centenas de entidades e movimentos que municiaram a equipe de advogados na elaboração desse documento exaustivo sobre os desmandos do presidente e de seu governo. “Eles trouxeram a realidade deles. São fatos que demonstram um conjunto de violações.”, afirma.

Kenarik fala das mortes, do auxílio emergencial que não sai, do apoio a pequenas empresas que não acontece. “É um acúmulo, cada dia uma coisa. O Brasil vive em dor. São dores espalhadas em todos os campos. É muito difícil. Há um sufocamento do povo brasileiro. O Estado Democrático de Direito, a nossa democracia não mais admite um governo irresponsável, que está acabando com todos os direitos em várias vertentes, em várias áreas. O Brasil é um país rico. E tem gente voltando para abaixo da linha da miséria, tendo seus direitos aniquilados”.

Apesar do quadro dantesco, a jurista diz que sentiu “uma energia muito bonita” na construção do pedido de impeachment, que é, basicamente, um sistema de defesa da sociedade. “O Brasil que construiu a Constituição de 1988 é o Brasil, o mesmo povo que está querendo colocar agora o Brasil nos trilhos.”