“Hoje ainda não há medicamento comprovado contra o coronavírus. O que nos resta nos resta é seguir os protocolos da Organização Mundial da Saúde, que é essa estratégia de reduzir a velocidade de disseminação do vírus”, é o que afirma o médico sanitarista José Gomes Temporão, que tem no currículo o enfrentamento à pandemia do H1N1, que atingiu o Brasil quando ele era ministro da Saúde, no segundo mandato de Lula.

Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele aponta que o Brasil tem muitas fortalezas, como a existência do SUS, mas também sofre de grave debilidade, que é a falta de coesão do governo central: “Num momento em que o presidente deveria estar procurando manter o país unidos, passando tranquilidade, passando segurança, confiando no seu ministro da Saúde, confiando nos cientistas, ele introduz um ruído. Um ruído muito negativo porque as pessoas ficam pensando que há um remédio, querem acesso a um remédio. Isso, do ponto de vista da saúde pública, de segurança dos pacientes e da medicina, é um disparate. Essa atuação só pode ser explica pela política, pelas intenções de manipular a opinião pública tentando criar confusão”.

As atitudes e pronunciamentos de Bolsonaro são consideradas por ele como um verdadeiro crime contra a saúde do povo, colocando em risco a própria segurança nacional:

“Quando não há uma coesão na condução da estratégia, o ministério, que é área técnica, que trabalha em cima de evidências, fala alguma, e o presidente fala exatamente o contrário, isso é muito grave, é gravíssimo. Aliás, já existem, protocolados na Organização das Nações Unidas e na Organização Mundial da Saúde, denúncias contra essa postura do presidente da República. Elas vão ser um dia analisadas e julgadas. Aliás, a história vai julgar”.

“As instituições, o Supremo Tribunal Federal, o ministério público poderiam fazer um contraponto a essa questão porque, na verdade, isso está colocando em risco a segurança nacional, isso está colocando em risco a saúde pública. Isso na verdade é um crime contra a saúde pública. Uma coisa é o que ele, pessoa física, pensa, ou que pessoas próximas a ele pensam. Ele é o presidente da República, foi eleito pela maioria dos brasileiros. Ele tem um papel, neste momento, intransferível, absolutamente central. Infelizmente, ele está deixando de cumprir esse papel de liderança, de coesão, de tranquilizar, de transparência, confundindo, criando problema, vendendo remédio que ainda não foi validado, questionando estratégias que o mundo todo obedece, que o mundo inteiro segue neste momento. Isso é muito grave. É gravíssimo.

FICAR EM CASA

Temporão alerta que é preciso ficar em casa, respeitar a orientação da Organização Mundial da Saúde, manter o isolamento social em todos os municípios, grandes ou pequenos: “Os resultados de nosso comportamento hoje vão aparecer daqui a três semanas, em número de casos, em mortes”, diz na entrevista (confira a íntegra no vídeo no alto da página).

Para ele, a ansiedade da população é natural: “Vivi uma situação semelhante com a pandemia do H1N1 em 2009. Toda situação como essa, onde um agente não é visível –só para vocês terem uma ideia, cem milhões de partículas do corona vírus cabem na cabeça de um alfinete–, traz medo, ansiedade, pavor, ainda mais um vírus para o qual ninguém tem imunidade natural”.

Pior: “Não existe nenhum país, nenhum sistema de saúde, nem o nosso sistema global de governança na área de saúde, que é a OMS, totalmente preparado para enfrentar o desconhecido.  E a situação do Brasil não pode ser comparada com a de nenhum outro país: somos um país muito desigual, com muita pobreza, subemprego, milhões de brasileiros vivendo em situação muito precária, com fragilidades. Claro que essa pandemia vai se expressar aqui de maneira diferente”.

O jeito é [ou deveria ser] respeitar a ciência: “O que há de ferramenta concreta neste momento, em que nós não temos medicamento? Apesar de o novo garoto propaganda da indústria farmacêutica, que é o presidente Jair Bolsonaro, estar insistindo na hidroxicloroquina, não temos tratamento. Não temos uma vacina e não teremos em menos de um ano, um ano e meio. O que nos resta é seguir os protocolos da Organização Mundial da Saúde, que é essa estratégia de reduzir a velocidade de disseminação do vírus. Para enfrentar essa situação, o governo precisa ter coesão, comando único, liderança, coerência. Não temos. Temos um ministro falando uma coisa e um presidente falando outra. Isso é gravíssimo. A equipe técnica do ministério da Saúde e o ministro, com suas contradições, vêm tendo um papel heroico, eu diria, porque aguentar um presidente que todo o dia praticamente fala sandices, mente descaradamente e confunde todo mundo, é muito difícil levar com coesão e coerência esse processo para a frente”.

A seguir, outros tópicos abordados por Temporão na conversa com Tutaméia.

CLOROQUINA

Em ciência, é preciso fazer estudos controlados para medir exatamente qual é o benefício e qual o malefício de cada terapia. Até a presente data não existe nenhum estudo científico robusto, respeitável, que tenha seguido todos os parâmetros científicos, que comprove que essa droga cause algum tipo de benefício no tratamento de pacientes doentes de covid 19, grave sou não.

Ela está continuando a ser usada no Brasil, com autorização do Ministério, porque não temos nenhuma outra ferramenta. Em todos os pacientes estão se usando várias combinações de drogas, não apenas essa, estão se usando outros retrovirais combinados, e existem vários estudos no mundo todo acontecendo. A expectativa é que tenhamos uma resposta nas próximas semanas. Funciona? Ok, vamos adotar. Não funciona, vamos para outra coisa.

O que está complicado no Brasil hoje é que estão surgindo especialistas, que, por mais meritórias ou mais nobres sejam suas intenções, que estão confundindo a população. Estão fazendo afirmações, por exemplo, de que essa droga deve ser usada nos primeiros sinais. Isso é muito grave, vou explicar por quê.

85% das pessoas infectadas não vai ter quadro grave, a maior nem sequer vai ter sintomas, você vai estar dando uma droga que pode causar problemas no fígado, nos rins e no coração. Não é uma droga isenta de efeitos colaterais.

Não há nenhum cabimento, neste momento, liberar o uso para quem quer que seja. O uso continua restrito, ainda sob protocolo de pesquisa, em pacientes internados em casos graves.

USO DE MÁSCARAS

O uso da máscara não é para se proteger. O uso da máscara, nos países asiáticos, é para proteger os outros, para impedir que outros se contaminem. Por uma questão cultural, disseminou-se o uso de máscaras.

A OMS recentemente liberou o uso de máscaras, chamando a atenção: máscaras cirúrgicas comuns podem ser usadas pela população sempre que a pessoa precisar sair de casa, mas chamando a atenção de que isso pode dar uma falsa segurança. Pode usar a máscara, mas tem de manter a higiene das mãos, tem de manter todas as outras posturas, tem de ficar em casa.

Então, use, sim, a máscara, mas apenas como mais um fator de proteção, sem imaginar que, com a máscara está tudo resolvido.

SAÚDE x ECONOMIA

Estamos hoje numa situação que é a seguinte: a saúde é quem manda. Ah, mas e o emprego? E a sobrevivência? A economia tem de garantir o emprego, tem de garantir a sobrevivência. O Paulo Guedes não pode ficar querendo continuar lendo na cartilha ortodoxa neoliberal. Tem de dar uma mudança radical na visão econômica.

Estamos vendo mudanças impressionantes: um monte de economistas ortodoxos viraram keynesianos da noite para o dia, desenvolvimentistas. Temos de pensar diferente, porque o Brasil nunca passou por uma situação como esta, o mundo nunca passou por uma situação como esta.

Há uma distância entre uma postura muito sólida da saúde e uma postura muito reticente, lenta e fragmentada da economia. Esse descompasso é mortal, porque as pessoas vão para as ruas, as pessoas têm de sobreviver.

SUS x REDE PRIVADA

Cerca de 75% da população brasileira dependem totalmente do SUS; 25% têm planos e seguros de saúde. Mas o setor privado tem quatro vezes mais leitos de UTI do que o SUS, considerando que o setor privado atende 50 milhões de brasileiros e o SUS atende 150 milhões de brasileiros.

Em algum determinado momento desse processo, o poder público vai ser obrigado a lançar mão de uma regulação integrada dos leitos. Talvez sejamos obrigados a lançar mão dessa estratégia para poder atender adequadamente, eticamente, a todos. Pois uma questão que é central para nós, médicos, é a equidade: ninguém pode ser deixado para trás por conta de sua condição social ou econômica ou qualquer que seja. Todos somos iguais, na prevenção, na atenção, no cuidado, na internação.

FLEXIBILIZAÇÃO DO DISTANCIAMENTO SOCIAL

Nesta semana foi criado pelo Ministério da Saúde uma coisa nova, que é o distanciamento social seletivo, permitindo que os municípios que tivessem pelo menos 50% dos leitos de UTI vagos, tivessem comprado todos os testes e equipamentos de proteção para seu pessoal de saúde flexibilizassem o distanciamento social.

O irônico dessa questão é que dificilmente algum município vai atender a esses requisitos.

Além disso o isolamento deve ser cumprido por todos os municípios. Municípios que não tenham nenhum caso podem ter o vírus circulando. Precisa mesmo assim ter toda a infraestrutura, aumentar o número de testes e evitar que cheguem pessoas contaminadas. É uma equação muito complicada. O mais lógico é que todos mantenham o distanciamento social horizontal, todos em casa. Com exceção dos setores fundamentais, que devem estabelecer os protocolos de segurança estabelecidos pelo ministério da saúde.

ISOLAMENTO VERTICAL

É um disparate total. Só quem não conhece a realidade brasileira ou finge que não conhece é que defende uma coisa como essa.

Seria isolar as pessoas de mais de 60 anos, com outras doenças, deixa-las em casa e liberar seus filhos, seus sobrinhos, para o trabalho, liberar as crianças para a escola. O que vai acontecer é que os cunhados, sobrinhos, tios, primos, filhos vão se contaminar no trabalho, no trânsito, na escola e, voltando para casa, vão contaminar os idosos que ficaram em quarentena fake em casa.

Isso não se sustenta de jeito nenhum. É um disparate.

OUTRAS PANDEMIAS VIRÃO

Basta olhar a história. Tivemos em 1918 a gripe espanhola, nos anos 1950 a gripe asiática, depois tivemos ebola, tivermos o SARS, tivemos o H1N1, tivemos zica, chicungunha.

Ou seja, uma intima relação e integração entre o homem e natureza, e a natureza está sendo simplesmente destruída.

À media que o homem entra e derruba florestas, vírus que circulavam entre animais, entre outras espécies, acabam atacando o homem e trazendo novas doenças, que a gente chama de doenças emergentes.

Se nós não mudarmos nosso padrão de relação com a natureza, não mudarmos nosso padrão de consumo, não mudarmos nossa relação com os animais, com a floresta, nós vamos continuar tendo situações como essa.

REFLEXÃO SOBRE O FUTURO
Além de ficar em casa, proponho uma mensagem de reflexão. É extremamente importante a gente parar para pensar o que está acontecendo, o que está impactando nossa vida, o que está mudando em nosso país. Fazer uma reflexão sobre a importância do SUS, uma reflexão sobre a importância sobre a importância da ciência, uma reflexão sobre o quanto é importante lutar para superar as desigualdades, cuidar dos mais vulneráveis, mudar nossa política econômica, mudar nossa política de emprego, pensar como é que a gente vai construir um país melhor.

Vamos sair disso, melhores e mais fortes, mas precisamos construir essa consciência política. Sem saúde, sem educação, sem ciência, nós não teremos uma Brasil próspero e igualitário.