“Jacarezinho é uma barbárie sem par. Foi efeito demonstrativo. Jacarezinho é prenúncio da guerra entre nós. Bolsonaro institucionalizou a desordem. Não dá para separar pandemia e Jacarezinho do governo Bolsonaro. Essas três coisas estão juntas. É ódio de classe. É mando de um governo assassino, no sentido de que é um governo que autoriza a morte. São genocidas. É um genocida que está dirigindo esse país”.

A análise é do antropólogo Paulo Magalhães, que trabalha com habitação popular desde os anos 1980, tendo atuado em várias favelas do Rio e no exterior. Conhecedor da rotina nas comunidades pobres, ele relata a rotina de violência e desrespeito a direitos imposta pela polícia à periferia. Agora, vê o agravamento da situação:

“O que existe nas periferias do Rio é fome. Estou vendo as pessoas comerem arroz com um pouco de cebola e um pouco de óleo. Não tem alimento. As pessoas cozinham com lascas de madeira. Não há mais possibilidade de você conseguir sobreviver numa situação assim. A pressão é muito grande.  Pode ser que não aconteça. Mas as pré-condições para uma guerra entre nós brasileiros está dada. Essa guerra começou no Jacarezinho ontem”.

Ele segue:

“Estou sendo apocalíptico porque também estou pensando em “Apocalipse Now” [Francis Ford Coppola, 1979]. Esse filme está muito associado com esse tipo de coisa. É a loucura instalada. É a prática do genocídio motivada, incentivada por um governo que diz: ‘Não vou punir’”.

Nesta entrevista (acompanhe no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ele avalia as justificativas apresentadas pela polícia para a operação e o contexto político mais amplo da operação. Magalhães lembra que a favela do Jacarezinho é um ícone no Rio, tendo uma localização estratégica.

Lembrando da conhecida declaração de Bolsonaro ofendendo os quilombolas, o antropólogo observa: “Jacarezinho se diz o quilombo do jacaré. Marca muito quem eles querem destruir: pobres, negros, quilombolas, índios. É um governo que dizima. Jacarezinho é mais do que Jacarezinho. É a ponta de um iceberg maior”.

TIRAR O FOCO DA CPI

Magalhães elenca vários fatos que podem estar conectados com a operação mais letal da história da polícia do Rio de Janeiro: o encontro de Bolsonaro com o governador do Estado, a mortandade crescente da pandemia, a criação da CPI da Pandemia, os posicionamentos do STF contra o governo e limitando a ação da polícia, a falta de vacinas.

“Isso faz parte de alguma estratégia geral Ao autorizar matar e não tendo controle, eles não agem conforme certos procedimentos formais. O que aconteceu no Jacarezinho foi uma cobertura institucional forte provocada por acontecimentos locais _a morte do soldado_ que degenerou numa mortandade enorme. Foi a barbárie consumada sem cuidado nenhum. Há uma tentativa de tirar o foco da CPI da Covid. Também pode ser uma demonstração de força daqueles que apoiam o Bolsonaro”.

Ele segue:

“Jacarezinho não é um fato isolado. Não é um bando de malucos que resolveu matar. Resolveu matar porque são malucos, mas resolveu matar dentro de uma estratégia. Tudo parece muito encadeado. [Como para dizer:] ‘Vou confrontar esses canalhas que estão me confrontando’”.

OPERAÇÃO FORJADA

Magalhães não vê sentido na alegação da polícia para a ação: salvar jovens que estariam sendo arregimentados pelo tráfico. Se assim fosse, pergunta o antropólogo, órgãos ligados ao juizado de menores e assistentes sociais deveriam ter sido mobilizados. “Levar para onde esses jovens? A ação não tem o menor sentido. Ninguém acredita nisso. Parece ser uma operação forjada. A polícia deveria apresentar os dados concretos da inteligência, da estratégia montada”, diz.

“Foi uma operação absolutamente consentida. Não acredito que esses policiais fizessem isso se não estivessem empoderados para isso. Houve o caso do policial morto e houve descontrole. Mas é absolutamente inaceitável que haja descontrole da polícia”, afirma.

“É uma radicalidade o que está acontecendo nesse país. Não é uma radicalidade produzida por grupos políticos organizados. Está sendo feito à margem da ordem. Bolsonaro está jogando com uma organização à margem da ordem. As práticas estão à margem da ordem”, ressalta.

Ressalvado que há muitos aspectos obscuros na operação, o antropólogo declara:

“Não há controle nenhum, é um exército entrando num bairro de uma cidade sem nenhuma regra, sem nenhuma estratégia. A única estratégia é: ‘Vou matar se me incomodar’. Ou aceitam as regras arbitrárias da polícia, ou eu mato. Porque não vai acontecer nada. Porque eu [policial] estou amparado, principalmente agora no governo Bolsonaro. O governo Bolsonaro autorizou”.

SEM ROTA DE FUGA

Ele segue:

“Quero ver o que vai acontecer na zona oeste. Aí são milícias adeptas do Bolsonaro e dispostas a lutar por ele. Ninguém adquiriu o lote de privatização da Cedae [na zona oeste]. Por quê? Não pagar água é uma prática muito comum. Não há salário que pague. Há uma diferença entre salário e a possibilidade de você pagar serviços públicos. Não é possível. Não é só na zona oeste, mas a zona oeste está armada. Sempre esteve e deve estar mais armada ainda. Sendo assim, eu acho que isso é prenúncio da guerra entre nós”.

Nesta entrevista, o antropólogo compara o atual momento e o da ditadura militar:

“Tenho 69 anos e vivi plenamente como ator, militante, cidadão a ditadura militar. Ela foi bárbara. Não pode ser atenuada. O governo Bolsonaro parece ultrapassar qualquer limite. De forma informal, com ações que aparentemente não tem nada a ver com o governo, mas articula-se uma rede de ações que são concatenadas. Não é possível uma ação dessa natureza acontecer”.

“A ditadura militar foi dura, prendia, era arbitrária. Mas, sob certos aspectos, você não pode comparar a ditadura com esse governo. Tinha mais, entre aspas, civilidade em algumas ações. Ela era um horror. Mas nesse governo aqui o presidente fala e autoriza. Lá, para o púbico, aparecia como o Brasil grande”.

Alertando sobre o futuro, afirma:

“A sociedade brasileira está sem rota de fuga. É só porrada o tempo todo. A guerra entre nós vai ser a guerra espontânea a partir de um fato que a gente não sabe e que pode provoca-la. Temos várias histórias em que os movimentos de luta política acontecem em nome de um fato fortuito. Mas é um acúmulo de histórias de opressão e de violência. O qual o caso do Jacarezinho é agora um outro marco. Uma hora deve acontecer. Porque não é possível que isso permaneça eternamente assim. Esse foi o maior massacre”.