O punk do The Clash, o folk de Joni Mitchell, a poesia de Leonard Cohen. Marx, Lênin, Eduardo Galeano, Noam Chomsky, João Pedro Stedile. Pandemia, extrema-direita, esquerdas, frentes. Gulags, bloqueios, genocídios. Brasil, Índia, Venezuela, Cuba, China, Laos. Imperialismo, neoliberalismo, colonialismo, machismo, fascismo, libertação.

Tudo isso faz parte da conversa de duas horas do jornalista e historiador indiano Vijay Prashad com o TUTAMÉIA. Autor de trinta livros, ele está lançando no Brasil “Balas de Washington” (Expressão Popular), que relata golpes e assassinatos perpetrados pela CIA ao redor do mundo. Correspondente da Globetrotter e colunista do Frontline (India), ele é editor-chefe da LeftWord Books (Nova Déli). Presente em várias articulações da esquerda, participa da recém-criada Internacional Progressista.

Quando avalia a pandemia, o jornalista aponta a responsabilidade para os governos que têm uma visão desvairada da ciência, como o de Bolsonaro. E pergunta: “Como é possível que um país pobre como o Laos, que faz fronteira com a China tenha ZERO mortes? A mortandade é resultado de “uma ação insensível e desumana do capitalismo”. Para ele, é necessário criar um tribunal para julgar esses governos por crimes contra a humanidade (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV)

Para Vijay, 53, a tarefa da esquerda é tentar trazer a racionalidade ao mundo. “Eu acredito que a gente precisa reunir toda a esquerda. Mesmo que eu tenha diferenças, isso não me importa. Nós somos marxistas por causa da racionalidade, não por causa de religião. O marxismo é uma ciência incompleta. O marxismo sempre está tentando compreender o mundo, analisar o concreto, não apenas a conjuntura, mas a estrutura da sociedade e como ela se modifica. É uma ciência sempre em mudança, sempre aprendendo, se desenvolvendo”, afirma.

Sobre sua atuação política e seu novo livro, declara: “Nossa missão não é contar coisas de forma que as pessoas fiquem deprimidas, mas sim para que eles tenham confiança de que podem mudar o mundo. Acho que isso que Marx quis dizer quando afirmou que ‘os filósofos, até agora, interpretaram o mundo. O que importa, no entanto, é mudar o mundo’. E, de fato, eu acho que Marx estava errado. A frase deveria ser: ‘Você não conseguirá entender o mundo a não ser que você deseje mudá-lo’. Desculpe por revisar Marx: Não se pode entender o mundo se não se quiser mudar o mundo”.

A seguir, alguns trechos da entrevista, realizada em inglês.

PANDEMIA: GOVERNOS SÃO CULPADOS PELAS MORTES

As doenças são algo natural na vida humana. Nós interagimos com a natureza, animais nos transmitem doenças, não há nada incomum nisso. Nós chamamos esse vírus de novo coronavírus, mas tivemos muitos outros vírus e epidemias antes. Ao longo da história, a humanidade foi atingida por vírus provenientes de animais. O problema aqui é que temos, em grandes partes do mundo, um sistema político, econômico e social que se mostrou incapaz de lidar com essa doença.

Quando um vírus é transmitido de animais para humanos, é uma coisa; quando a transmissão é de humanos para humanos, é preciso tomar medidas de precaução diferentes. Quando a China alertou sobre essa característica do novo coronavírus, em janeiro deste ano, países que têm governos racionais, como o Vietnã, o Laos, Cuba e outros, imediatamente tomaram medidas para proteger suas populações. Países que têm governos completamente insanos, alienados da realidade, governos que alucinam em, relação à política, como o do primeiro-ministro Narendra Modi, na Índia, como os governos da Itália e da Grã-Bretanha, Trump, nos Estados Unidos e, claro, Bolsonaro no Brasil, eles têm uma visão doida, desvairada da ciência.

Eles não levaram em consideração as orientações da Organização Mundial da Saúde nem o que o governo chinês informou. Muitos desses governos também tinham feitos cortes profundos nos investimentos em saúde. A combinação dessa falta de investimentos e cuidados com a saúde pública e uma atitude de desprezo, desumana, em relação ao que a OMS dizia fez com que esses países ficassem despreparados para enfrentar um vírus muito normal.

OLIMPÍADA DE DESUMANIDADE

Por isso, a gente vê os Estados Unidos, a Índia e o Brasil competindo nessa triste olimpíada de desumanidade. Esses três países disputam entre si para ver qual terá os piores registros em números de mortes e casos de infecção pelo novo coronavírus.

Eu repito: não culpo o vírus por tudo isso. Isso é simplesmente algo que costumeiramente acontece na natureza. Como é possível que num país pobre como o Laos, que tem 11 milhões de pessoas e faz fronteira com a China, pessoas estão o todo tempo indo de um lado para o outro, tenha ZERO mortes pela Covid 19? Zero! O Brasil, que tem um oceano inteiro a separá-lo da China e outro oceano do outro lado. Veja quantas pessoas já morreram no Brasil –cerca de 140 mil, na hora em que foi feita a entrevista! Isso é culpa do vírus ou é culpa dos governos?

O governo Temer começou com os cortes na área de saúde, e Bolsonaro não deu bola para esse vírus. Quem deve ser tido como responsável por essas mortes? Um ato da natureza? Ou uma ação insensível, desumana, do capitalismo?

Eu não aponto meu dedo para o vírus, que é uma criação normal da natureza. Eu aponto para Modi, na Índia, eu acuso a política neoliberal que, ao longo dos últimos trinta anos, destruiu o sistema público de saúde. A culpa não é do vírus, a culpa é do capitalismo!

NÃO PRECISAMOS DE SALVADORES DA NAÇÃO

Nós, na esquerda, falhamos no enfrentamento a certas questões culturais de nossas sociedades. Estamos corretos em dar ênfase a questões econômicas, estamos corretos ao enfatizar questões políticas, mas atrás e por baixo de tudo isso há uma podridão cultural; nossas sociedades estão podres. Há um ruidoso machismo que completamente destrói o tecido social. Racismo, sexismo, homofobia –o sistema de castas na Índia–, patriarcado, tudo isso arranha a composição de nossa sociedade. A não ser que a esquerda confronte essas questões, esses machões como Bolsonaro, Modi, Trump vão se apresentar como os salvadores da nação.

Nós não precisamos de salvadores da nação! Nós precisamos de governos que cuidem das pessoas.

Não se pode construir uma nova política se não confrontarmos o patriarcado e o racismo, porque eles arruínam a sociedade. Nossa política é baseada numa sociedade igualitária. Sou um marxista, mas acredito que precisamos enfatizar essas questões, e não só a luta de classes. Não podemos avançar na luta de classes em uma sociedade em que não há igualdade para as mulheres, onde os povos da África não sentem a igualdade.

ECONOMISTAS PERDERAM A CABEÇA?

Esses governos neoliberais, como o governo de Modi, na Índia, não são capazes de aprender nenhuma lição. Se suas taxas de aprovação estão subindo, e você não está fazendo nada, que lição você deveria aprender?
Nós estamos num período muito perigoso na história da humanidade, em que esses líderes de extrema direita, seja na Polônia ou no Brasil ou na Índia ou nos Estados Unidos, eles não se importam com a opinião pública, não se importam com a violência que surge em seus países.

E o que podem pensar os economistas sérios? Eles deveriam estar muito preocupados. O FMI, a OMC todos eles preveem que os EUA, ao longo desta década e início da próxima, terão redução em sua atividade econômica. Todos dizem que a China vai ter aumento da atividade econômica ao longo dos próximos anos. E, apesar disso, os governos do Brasil e da Índia decidiram romper com a China e se integrar cada vez mais à economia norte-americana. Vocês perderam a cabeça? Estou falando apenas de economia, não de política. É insano!

O que acontece com esses economistas? Eles estão tão cegos pela ideologia e pela geopolítica que preferem ver seus países ligados aos EUA, e concordam em cortar laços com a China. Isso me parece insano, não leva em conta os interesses de seus próprios países.

LIVRO “BALAS DE WASHINGTON”

Não queria escrever um livro que fizesse com que as pessoas se sentissem impotentes frente a CIA, impotentes frente ao imperialismo norte-americano. Quero que minha escrita dê ao leitor o sentimento de pode derrotar esses poderes.

Nosso objetivo ao falar, ao escrever, não é fazer com que as pessoas fiquem deprimidas, de moral baixo. Nosso objetivo como jornalista não é falar coisas para as pessoas: Não quero que você se sinta deprimido, desarmado, alienado da história. Eu quero compartilhar com meu leitor o que eu aprendi sobre as coisas terríveis da vida, para fazer com que ele se sinta capaz de entender as coisas e mudar as coisas.

Ao escrever esse livro, pensei muito em como eu iria contar a história. Queria contar a história de uma forma que cada leitor e cada um que ouvisse essa história sentisse que tudo isso pode ser mudado, que as pessoas têm poder de mudança. É isso o que significa fazer jornalismo de esquerda.

Nossa missão não é contar coisas de forma que as pessoas fiquem deprimidas, mas sim para que eles tenham confiança de que podem mudar oi mundo. Acho que isso que Marx quis dizer quando afirmou que “os filósofos, até agora, interpretaram o mundo. A que importa, no entanto, é mudar o mundo”. E, de fato, eu acho que Marx estava errado. A frase deveria ser: “Você não conseguirá entender o mundo a não ser que você deseje muda-lo”. Desculpe por revisar Marx: Não se pode entender o mundo se não se quiser mudar o mundo.

UNIÃO DAS ESQUERDAS

Vamos tentar fazer nossos projetos avançarem. Não tentemos ser perfeitos, nós todos temos falhas. Mas vamos tentar trazer razão (racionalidade) ao mundo. Isso é o que significa fazer política de esquerda: a tentativa de trazer racionalidade ao mundo.

Eu apoio todas as articulações, e não quero que eles se enfrentem entre si. Estou envolvido em muitas articulações internacionais. Estou mais próximo da chamada Assembleia Internacional dos Povos, que nasceu numa reunião no Brasil e é uma rede de duzentas organizações internacionais. Ela vem se desenvolvendo ao longo dos últimos cinco anos e, em dentro de alguns meses, teremos um evento de lançamento.

Estou envolvido na Internacional Progressista, que emergiu de um encontro em Vermont (EUA). É um trabalho em andamento, uma articulação de esquerda.

Eu acredito que a gente precisa reunir toda a esquerda. Mesmo que eu tenha diferenças, isso não me importa.

Nós somos marxistas por causa da racionalidade, não por causa de religião. O marxismo é uma ciência incompleta, o marxismo sempre está tentando compreender o mundo, analisar o concreto, não apenas a conjuntura, mas a estrutura da sociedade e como ele se modifica. É uma ciência inacabada, sempre em mudança, sempre aprendendo, se desenvolvendo.

NÃO FOMOS DERROTADOS; AINDA ESTAMOS VIVOS

Essa pandemia tem sido uma experiência muito dura para muitos de nós, socialmente, mentalmente, psicologicamente. É muito difícil. Gente como nós está acostumada a estar nas ruas, a participar de manifestações, estamos acostumados a conversar de perto, a nos abraçarmos, somos gente muito sociais. Para nós, ficar isolados é como estar em prisão domiciliar. Quero mandar meu amor e apreço, muito sinceramente, a todas as pessoas, esperando que todos nós encontremos a coragem que nos permita passar por essa “prisão domiciliar” da pandemia e, quando estivermos do outro lado, vamos dançar nas ruas, nos manifestarmos e vamos deixar claro para os Modis e Bolsonaros deste mundo que nós ainda estamos aqui. Nós não fomos derrotados, não estamos quebrados. Nós ainda estamos vivos e ainda nos recusamos a aceitar as regras e o domínio deles. Nós não estamos mais tristes, não estamos tristes.